Cidades

Domingo, 08 de Agosto de 2021, 11h40

'Culpar a vítima pela agressão é atroz', diz delegada sobre violência doméstica

Khayo Ribeiro

Gazeta Digital

Titular da Delegacia da Mulher, Criança e Idoso de Cáceres (225 km a oeste de Cuiabá), a delegada Judá Maali Pinheiro Marcondes afirmou que, em ocorrências de violência contra a mulher, há casos históricos que demonstram que a culpabilização das vítimas é uma das estratégias utilizadas pelos agressores.

"Culpar a vítima pela agressão é atroz", disparou a delegada a respeito desta prática, que, segundo ela, é vedada pelo Supremo Tribunal Federal. Confira a entrevista da semana na íntegra a seguir.

Delegada, demos início ao segundo semestre do ano há poucos dias e nesse curto período de tempo houveram casos de violência contra mulher que repercutiram nacionalmente. Qual o saldo deste tipo de crime nos primeiros 6 meses?  

JM: O primeiro semestre de 2021 foi delimitado pela pandemia em que se exigiu isolamento social e maior convivência intrafamiliar, condição que gerou conflitos e, por conseguinte, violência doméstica contra mulheres. Embora tenha diminuído o índice de feminicídio no estado de Mato Grosso, aumentou a procura nas delegacias para registros de ocorrência consubstanciando violência de gênero e será uma tendência que se firmará no segundo semestre.    

Há 15 anos, completados neste mês, a Lei Maria da Penha vem garantindo segurança jurídica a mulheres que sofrem violência doméstica. Contudo, mesmo após mais de uma década, ainda há casos que param o Brasil, a exemplo das agressões do DJ Ivis. Isso dá um indicativo de que a norma ainda pode ser melhorada?  

JM: A Lei Maria da Penha é uma das mais perfeitas de nosso ordenamento jurídico, pois garante proteção, assistência social e psicológica à mulher. Ademais, traz a possibilidade de prisão em flagrante delito do agressor e a decretação em prisão preventiva. Concede medidas protetivas de urgência afastando imediatamente o agressor do lar. Prevê a prisão pelo descumprimento de medidas de proteção deferidas pelo judiciário. O que precisa ser melhorado é a efetivação  das políticas públicas no enfrentamento à violência doméstica, fortalecendo os órgãos de apoio às mulheres, promovendo a conscientização da sociedade sobre a temática, enfocando na educação escolar a importância do respeito à mulher.    

Em Mato Grosso, segundo relatório da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), 74% dos feminicídios ocorreram dentro das casas das próprias vítimas. Como as forças de segurança podem implementar ainda mais seu poder de alcance para assistir às vítimas antes que os crimes sejam executados?  

JM: Hoje, a Polícia Civil disponibiliza o aplicativo SOS Mulher MT em que a vítima pode solicitar medidas protetivas de urgência de forma online, estando dentro de casa.  Confere-se, também, à ofendida o botão do pânico, de modo que a polícia solicita, caso a mulher estiver em situação de vulnerabilidade. Dessa forma, consegue-se atingir as mulheres que possuem alguma resistência ou dificuldade de se deslocarem até uma delegacia, podendo buscar por ajuda estando dentro de sua casa.    

Neste mesmo levantamento divulgado pela Sesp em 79% dos casos as vítimas nunca registraram boletim de ocorrência contra seus companheiros. Por que esse número é tão alto?  

JM: A subnotificação dos casos de violência doméstica é uma realidade que deve ser evidenciada. Há vários fatores que condicionam a mulher a não registrar ocorrência: a vergonha de se expor, porque culturalmente ensinou-se a mulher desde pequena a não brigar por seus direitos, como se fosse errado processar alguém que lhe ofende; a crença de que o ciclo de violência a que está inserida acabará e que o agressor mudará; culpa pelo rompimento da relação - a mulher acredita que a responsabilidade pela manutenção do casamento é somente sua e romper seria um fracasso enquanto mulher; Motivos religiosos - muitas religiões impõe a submissão feminina e a obrigatoriedade da manutenção do casamento, premissas que condicionam muitas mulheres a subnotificar as agressões a que são acometidas; ciúmes - há agressores que justificam a violência contra a companheira por alegar ciúmes, inserindo a mulher numa opressão que perdura por anos, sem que esta perceba que está sendo vítima de violência doméstica, embora venha sofrendo intensamente; dependência financeira - há mulheres que exercem tarefas domésticas sem remuneração, ficando sujeitas ao companheiro, motivo pelo qual sentem-se enfraquecidas a ponto de não denunciar as agressões.    

No comparativo com 2019, o último ano registrou um aumento de 58% nos casos de feminicídio no estado, coincidindo com o período de pandemia da covid. A partir do conhecimento destes dados, e pelo fato de ainda estarmos na pandemia, alguma ação específica tem sido adotada pela polícia para que 2021 apresente números diferentes de 2020?  

JM: A Polícia Civil do Estado de Mato Grosso não fechou as portas durante a pandemia. Trabalhou-se diuturnamente, deflagrando operações por todo estado com intuito de combater a criminalidade de gênero. Verificou-se uma redução nos casos de feminicídio de 30% no primeiro semestre do ano de 2021, resultado do empenho dos policiais civis, os quais seguem obstinados com objetivo de manter essa tendência.    

Quando casos de violência contra a mulher ganham repercussão, em muitas situações a vítima relata já ter passado por diversos episódios de violência. Em se tratando de um crime recorrente, o que faz com que as vítimas não se separem dos agressores?  

JM: Embora sofram intensamente, as vítimas de violência doméstica permanecem com o agressor por diversos motivos (vergonha, medo, falta de apoio familiar, religião, dependência financeira). No entanto, não se pode dizer que 'gostam' de ser agredidas. Este pensamento é machista e não possui empatia. Ninguém 'gosta' de sofrer, sobretudo na condição de vítima da pessoa que se ama, que se escolhe para ser o genitor dos filhos ou companheiro de vida. A essas mulheres deve-se oferecer a apoio, encorajamento, independência financeira, conhecimento.    

Ainda em se tratando do caso do DJ Ivis, a defesa dele se baseou em supostas justificativas que desabonassem a vítima. Essa é uma prática comum em situações deste tipo, sobretudo quando ganham grande repercussão?  

JM: Denegrir a conduta/honra da vítima, como neste caso do DJ Ivis é muito comum. Sob o olhar machista, a decência e a honradez são atributos ligados especificamente à mulher, de modo que se autoriza agredi-la se acaso não os tiver. Culpar a vítima pela agressão é atroz, cruel, machista, antiquado e ofende a dignidade do ser humano. Historicamente, já se viu em julgamentos nos quais testemunhas e defesa difamam vítima e ovacionaram o agressor, como no Caso Leila Diniz, quando culparam-na por ter provocado outros homens e que seu companheiro Doca Street a matou pela legítima defesa da honra. Hoje, o STF proíbe defesas com este conteúdo, todavia ainda perdura no seio social, o que deve ser combatido constantemente pelos órgãos de segurança e por toda sociedade, porque o respeito ao próximo é dever de todos.

 

Comentários (2)

  • elcio |  08/08/2021 12:12:55

    vítima é vítima sendo ela homem ou mulher. todos são iguais perante a CF/88, logo, todos devem receber um trato isento da parte dos órgãos publicos responsaveis pela apurração de crimes.

  • elcio  |  08/08/2021 12:12:20

    essa de culpar a vitima não é valido apenas para a questões que envolvem mulheres, mas para todos os casos que envolvem pessoas, seres humanos. neste caso não cabe ideologia, mas cabe a polícia que ganha muito bem, investigar e de forma despegada, isenta, sem paixoes, sem feminismo, sem extremismo, sem heterofobia.

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