Opinião

Sexta-Feira, 06 de Junho de 2025, 11h10

Frederico Pimentel

Recuperação em AA sob a ótica do existencialismo

Frederico dos Santos Pimentel

 

Do meu ponto de vista, a jornada de recuperação da pessoa com a dependência alcoólica não se resume à simples abstinência do álcool, mas sim a um profundo processo de reencontro com o próprio ser, com a liberdade e com a responsabilidade sobre a própria existência. É nesse contexto que a participação em Alcoólicos Anônimos (AA) assume um papel de relevância inestimável.

O existencialismo reconhece que o ser humano é lançado em um mundo que não escolheu, mas no qual tem a liberdade e a responsabilidade de construir seu próprio sentido. Para o dependente químico, a existência muitas vezes foi marcada por um vazio existencial, pela angústia e pela tentativa de silenciar a dor da liberdade com o consumo do álcool. O álcool surge como uma fuga, uma forma de evitar o enfrentamento das questões mais profundas da vida: a liberdade, o medo, a finitude, o fracasso e o isolamento.

Nos grupos de Alcoólicos Anônimos, a pessoa é acolhida por outros que compartilham de experiências semelhantes, criando um espaço onde ela pode se reconhecer como ser humano em sua imperfeição, mas também em sua potência de mudança. Para mim, psicólogo existencialista, esse ambiente de escuta genuína e autenticidade é essencial. Ele proporciona à pessoa uma oportunidade de assumir sua angústia de forma criativa, transformando a dor em uma força propulsora para a autotranscendência.

O existencialismo valoriza a autenticidade como uma postura de vida, e nos encontros do AA, o alcoolista aprende a praticá-la. Ao admitir sua impotência diante do álcool e ao assumir sua vulnerabilidade perante o grupo, o indivíduo abandona as máscaras sociais e inicia o processo de se tornar aquilo que verdadeiramente é. Isso está em consonância com o princípio existencial de que é no confronto com a angústia que o ser humano se apropria da própria existência.

Além disso, o método dos 12 passos, tão central em AA, pode ser reinterpretado pela psicologia existencialista como uma trilha de responsabilização e reencontro com o sentido. Passos como o reconhecimento dos próprios erros, a reparação de danos e a busca por um contato espiritual podem ser compreendidos não como uma submissão a uma moral externa, mas como formas de reconciliação com a própria consciência e construção de um novo projeto existencial.

Precisamos entender, a partir de uma ótica existencialista, que a cura não está em evitar a dor, mas em encontrar um sentido capaz de justificá-la. Viktor Frankl, uma das referências centrais dessa abordagem, afirmava que “quem tem um porquê, enfrenta qualquer como”. Em AA, o indivíduo redescobre seus “porquês”: reconectar-se com a família, recuperar a dignidade, ajudar outros em sofrimento. Assim, o grupo se transforma não apenas em apoio, mas em catalisador de um novo sentido de vida.

Participar dos Alcoólicos Anônimos é, portanto, mais do que frequentar reuniões; é comprometer-se com uma escolha existencial de autenticidade, liberdade e responsabilidade. É reconhecer que, embora não possa mudar o passado, é possível escolher, a cada dia, quem se quer ser. E nessa escolha contínua reside a verdadeira recuperação.

Frederico dos Santos Pimentel é psicólogo

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