Um dos 563 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em uma construção de usina em Porto Alegre do Norte, a 1.143 km de Cuiabá, descreveu como era a precariedade do local e parte da rotina de trabalho.
"Muito descaso, muita falta de responsabilidade com o funcionário. A água não era potável, era amarela, banheiro podre, a gente ficava sentindo aquele fedor da fossa e muito calor dentro dos quartos. A gente ia comer 11h30, quando dava 12h tinha que voltar e, muitas vezes, a comida estava estragada", relatou.
O cenário de trabalho degradante era na construção de uma usina de etanol da empresa 3Tentos. A obra era executada pela TAO Construtora. A empresa tem quatro obras em andamento no estado, com cerca de 1,2 mil trabalhadores, sendo a unidade de Porto Alegre do Norte a maior delas.
Em nota, a 3tentos informou que adotou uma série de ações para apurar os fatos e avaliar as medidas cabíveis, além de colaborar com as autoridades responsáveis. Já a empresa TAO Construtora informou que está colaborando com a investigação da polícia e que, até o momento, não foi autuada sobre o caso.
Para reivindicar os direitos, eles protestaram e incendiaram os alojamentos no dia 20 de julho. A Polícia Militar esteve no local e, segundo os trabalhadores, os PMs atiraram contra eles e os obrigaram a voltar ao trabalho.
"A polícia chegou atirando, eles tinham conhecimento [da situação dos trabalhadores]. Um cara ficou com o peito todo furado, teve outro que se queimou", afirmou.
Ao g1, a Polícia Militar informou que não tinha conhecimento da situação lamentável análoga à escravidão quando compareceram no protesto. Conforme o boletim de ocorrência, a polícia foi acionada após uma denúncia de que as instalações estavam sendo depredadas e incendiadas. Segundo a polícia, os trabalhadores estavam exaltados e, em determinado momento, após o representante da empresa tentou conversar, os trabalhadores começaram a proferir ameaças, atirar pedras e avançar contra os policiais.
Ainda de acordo com o boletim de ocorrência, os alojamentos e parte do refeitório ficaram destruídos. O Corpo de Bombeiros foi acionado para conter o incêndio e dois funcionários foram conduzidos à delegacia.
O protesto resultou na investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que levou ao resgate dos trabalhadores e à abertura de uma investigação sobre tráfico de pessoas para trabalho análogo à escravidão.
A TAO Construtora informou que alguns trabalhadores foram realocados depois de terem sido afetados por um incêndio criminoso no alojamento, provocado por colegas. A construtora disse ainda que firmou, com o MPT, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com caráter emergencial e reparatório, sem confissão de culpa.
"Importante destacar que uma grande quantidade de colaboradores manifestou o desejo de retornar ao trabalho, o que demonstra a relação de confiança construída no canteiro de obras [...] A TAO Construtora repudia veementemente qualquer prática análoga à escravidão ou tráfico de pessoas", disse.
Segundo o MPT, após o incêndio, foram registradas 18 demissões por justa causa, 173 rescisões antecipadas de contratos e 42 pedidos de demissão. Cerca de 60 trabalhadores perderam todos os pertences pessoais no incêndio.
De acordo com o MTE, a empresa não conseguiu preencher as vagas com mão de obra local e, por isso, adotou uma estratégia de recrutamento em estados do Norte e Nordeste, principalmente no Maranhão, Pará e Piauí.
Conforme a investigação, os trabalhadores eram atraídos por meio de anúncios veiculados em carros de som e mensagens compartilhadas em grupos de WhatsApp, com promessas enganosas de altos ganhos com horas extra (entenda mais abaixo).
As contratações e jornada de trabalho
Muitos trabalhadores relataram ter pago valores a intermediários para conseguir a vaga e arcaram com os custos da viagem e alimentação. Em outros casos, a empresa cobriu as despesas da viagem, mas os valores foram integralmente descontados dos salários, prática considerada ilegal e abusiva que transfere aos trabalhadores o risco do empreendimento.
Aqueles que não passavam nos exames admissionais ou eram rejeitados no processo seletivo, ficavam sem recursos para voltar para casa.
Outro ponto grave foi a descoberta de um sistema paralelo de controle de jornada, conhecido como “ponto 2”. Nele, eram registradas horas extras que não constavam nos controles oficiais. Esses pagamentos eram feitos em dinheiro vivo ou cheques, sem registro em contracheque, recolhimento de FGTS ou contribuições previdenciárias.
Os auditores ouviram relatos de operários que trabalhavam semanas seguidas, inclusive aos domingos, sem qualquer folga, em total descumprimento da legislação trabalhista. Os trabalhadores cumpriam expediente além das 8h48 diárias estabelecidas, com turnos que chegavam a 22 horas.
As horas extras não eram registradas formalmente, os pagamentos eram feitos “por fora”, em dinheiro ou cheques, sem registro em folha, o que caracteriza sonegação fiscal. Além disso, essas horas extras prometidas na contratação, faziam parte de uma falsa promessa de altos rendimentos.
A alimentação também era alvo de denúncias. Os trabalhadores recebiam comida repetitiva, com relatos de larvas, moscas e alimentos deteriorados. O refeitório não tinha ventilação, o que forçava muitos a comerem em pé ou fora do local destinado às refeições.
O Ministério Público do Trabalho está em processo de negociação de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com a empresa, para garantir o pagamento das rescisões e outros direitos dos trabalhadores.
Condições precárias identificadas na obra:
Alojamentos
Dormitórios com apenas 12 m², abrigando até quatro pessoas por quarto
Ausência de ventilação adequada e climatização
Apenas um ventilador para quatro trabalhadores
Superlotação: alguns operários dormiam no chão, sob mesas, por falta de camas
Colchões velhos e de má qualidade, cobertos apenas com lençol fino
Ausência de travesseiros, fronhas e roupas de cama adequadas
Falta de espaço para armazenar pertences pessoais
Infraestrutura e saneamento
Falhas no fornecimento de energia elétrica, o que interrompia o abastecimento de água dos poços artesianos
Banhos tomados com canecas, em razão da falta de água
Longas filas para banheiros sujos
Após incêndio, uso de água turva retirada do Rio Tapirapé, imprópria para consumo
Condições de trabalho
Canteiro de obras com excesso de poeira, ambientes sem ventilação e refeitórios inadequados
Falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) para manipulação de produtos
Ocorrência de acidentes de trabalho não comunicados oficialmente
Relatos de lesões nas mãos e nos pés e doenças de pele
Ausência de emissão das Comunicações de Acidente de Trabalho (CATs), impedindo acesso a benefícios do INSS e atendimento médico
O que é trabalho análogo à escravidão?
O Código Penal define como trabalho análogo à escravidão aquele que é "caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto".
Todo trabalhador resgatado por um auditor-fiscal do Trabalho tem, por lei, direito ao benefício chamado Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado (SDTR), que é pago em três parcelas no valor de um salário-mínimo cada.
Esse benefício, somado à garantia dos direitos trabalhistas cobrados dos empregadores, busca oferecer condições básicas para que o trabalhador ou trabalhadora possa recomeçar sua vida após sofrer uma grave violação de direitos.
Além disso, a pessoa resgatada é encaminhada à rede de Assistência Social, onde recebe acolhimento e é direcionada para as políticas públicas mais adequadas ao seu perfil e necessidades específicas.
COMO DENUNCIAR? - Existe um canal específico para denúncias de trabalho análogo à escravidão: é o Sistema Ipê, disponível pela internet. O denunciante não precisa se identificar, basta acessar o sistema e inserir o maior número possível de informações.
A ideia é que a fiscalização possa, a partir dessas informações do denunciante, analisar se o caso de fato configura trabalho análogo à escravidão e realizar as verificações no local.