Opinião Terça-Feira, 24 de Junho de 2025, 13h:06 | Atualizado:

Terça-Feira, 24 de Junho de 2025, 13h:06 | Atualizado:

Daniel Teixeira

Quando a lei ignora a realidade, a realidade ignora a lei

 

Daniel Teixeira

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Daniel Teixeira

 

Estamos diante de mais um projeto de lei na Câmara Municipal que, a pretexto de proteger o consumidor, ameaça silenciar de vez a música e comprometer o sustento de quem vive dela.

Falo da proposta que torna o couvert artístico opcional mesmo para quem assiste à apresentação ao vivo, tendo sido previamente avisado da cobrança, e ainda assim decidiu permanecer no ambiente do show. Uma regra que, na prática, inviabiliza o modelo de remuneração dos músicos em bares e restaurantes. É a morte da arte por decreto.

Quando a lei ignora a realidade, a realidade ignora a lei, já dizia Georges Ripert. E a realidade, aqui, é claro: se o pagamento deixar de ser obrigatório, o hábito se impor — e ninguém mais pagará. Não por má-fé, mas por impulso. É da natureza humana: o que é opcional, tende a desaparecer. E com ele desaparece o artista, o som, o ofício.

Ainda mais grave: trata-se de matéria de natureza civil, claramente fora da competência do Legislativo Municipal. A Câmara de Vereadores não pode legislar sobre obrigações contratuais entre particulares. Mesmo assim, o projeto avança, como tantos outros no Brasil, impulsionado por bons interesses e mais técnica.

Vivemos um excesso de leis e uma carência de escuta. A cada legislatura, surgem dezenas de projetos apressados, que sequer passam pelo crivo da sociedade diretamente afetado. No Brasil, legisla-se muito e debate-se pouco. É como tentar construir uma casa atualizando o alicerce por mais paredes.

A Constituição já prevê a obrigatoriedade de audiências públicas em temas de interesse coletivo (art. 58, §2º), e o Estatuto das Cidades reforça essa diretriz. Mas a prática é outra: consulte-se depois, quando o estrago já estiver feito. A população é estudada por normas que regulam sua vida sem tê-la escutada.

Desde os tempos de Roma, sabíamos que a boa lei nascia do confronto de ideias na praça pública. A boa política nasce do dissenso, da escuta, da ponderação. Leis eficazes não brotam do gabinete — brotam do chão da cidade, do diálogo com quem vive o cotidiano que se quer regulamentar.

Quando uma norma não reflete a realidade, ela perde autoridade. E a ocorrência da sociedade vem. Não necessariamente como desobediência aberta, mas como distanciamento, descrédito e descumprimento prático. Leis que não dialogam com a vida viram letra morta. E letra morta não move cultura, não embala canções, não sustenta famílias.

Se a intenção é proteger o consumidor, ótimo. Mas que esse cuidado alcance também o artista, o microempresário, o trabalhador da noite. Porque o que está no jogo não é apenas um valor na conta — é o valor que damos ao trabalho artístico. À vida noturna. À liberdade de criar, cantar, tocar.

Se quiser mexer no couvert, que antes escutem quem faz da música sua esperança diariamente.

Quem transforma suor em melodia e sustento em som.

Que chamem para a conversa quem carrega a cidade nas cordas do violão e nos pulmões do sopro.

Se o cuidado é com o consumidor, que ele se estenda também ao artista — que não pode viver só de aplauso.

Antes de legislar, ouça.

Antes de tentar, saibam.

Antes de calar, ouçam o que a alma da cidade ainda tenta cantar.

Por Daniel Teixeira





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Comentários (3)

  • Citizenship

    Terça-Feira, 24 de Junho de 2025, 18h41
  • É difícil entender por quais razões os vereadores pretendem invadir o espaço de negociação direta entre estabelecimentos comerciais e seus clientes para legislar sobre os modelos de precificação que eles decidam adotar. Não se trata de defender os consumidores, mas de tutelá-los, como se fossem incapazes de avaliar se os preços que pagam pelos serviços e produtos oferecidos estão adequados e aptos a serem pagos. Esta é uma decisão que cabe ao cliente e não à lei. Se um estabelecimento quiser assumir os custos para pagar aos músicos um valor especificado sem evidenciar aos clientes quanto coube a cada um deles assumir, é uma decisão do estabelecimento. Se os clientes entenderem que os preços são excessivos, procuram outro lugar para atendê-los. Por que os vereadores devem interferir? Aos vereadores cabe averiguar se os estabelecimentos estão pagando os impostos devidos, sem sonegação. Se a qualidade dos produtos servidos está condizente com as normas sanitárias. Se o volume sonoro está dentro dos limites de poluição sonora legalmente estabelecidos para a localização. Mas, decidir o que pode ou não cobrar e como apresentar a precificação aos clientes? Essa é uma esfera de negociação estritamente privada que não cabe aos legisladores municipais interferir.
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  • Eleitor

    Terça-Feira, 24 de Junho de 2025, 15h55
  • Caro articulista e proprietário de restaurantes: eu não vou a um restaurante para ouvir música, muito menos ao vivo, ainda menos mal cantada e tocada, e menos ainda de certos gêneros. Vou ao estabelecimento para ter uma refeição minimamente aceitável e, se possível, ter uma boa conversa com familiares e amigos. Então, suma com esse maldito couvert da minha frente e não reclame. Se achar ruim, deixo de pagar os 10% também.
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  • Neto

    Terça-Feira, 24 de Junho de 2025, 13h52
  • Mais uma vez o legislativo municipal querendo holofotes populistas, mas esquece que a noite cuiabana é aquecida pelo movimento artistico que nela se apresenta.
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