Cidades

Domingo, 08 de Junho de 2025, 10h58

ENTREVISTA

Advogado explica avanços e limites do cadastro de pedófilos

ALLAN MESQUITA

Gazeta Digital

 

Nesta semana, o Gazeta Digital traz uma entrevista exclusiva com o advogado Marco Marrafon, especialista em Direito Constitucional, Agroambiental e Regulatório. Marrafon analisa um dos temas mais sensíveis e debatidos no cenário jurídico e social atual: os cadastros de criminosos sexuais, tanto em nível estadual quanto nacional. A entrevista traz esclarecimentos relevantes sobre o funcionamento e os impactos dessas medidas para a sociedade. 

O advogado aborda as diferenças entre o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, de abrangência federal, e o cadastro estadual de pedófilos e agressores em Mato Grosso, previsto no Projeto de Lei nº 527/2025. Segundo ele, além da diferença de escopo – já que o cadastro estadual abrange também crimes contra mulheres – há implicações jurídicas relevantes sobre o momento da inclusão dos condenados, o que pode gerar debates e até insegurança jurídica. 

Marrafon também comenta pontos polêmicos, como a possível adoção da castração química como medida complementar, a vedação ao exercício de cargos públicos, a inelegibilidade de condenados e a exposição pública dos dados. Ele reforça a necessidade de equilíbrio entre transparência, proteção social e garantias constitucionais, propondo critérios técnicos para o uso responsável dessas ferramentas. 

Qual é a principal diferença entre o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais e o cadastro estadual de pedófilos e agressores em Mato Grosso, tanto em termos de abrangência quanto de aplicação jurídica? 

É possível que haja dois cadastros distintos, cumulativos, mas com consequências diversas a serem apuradas. A principal diferença é que o cadastro nacional de pedófilos será mantido pelo Governo Federal e abrangerá exclusivamente os crimes ligados a pedofilia. Já no Estado de Mato Grosso, o Projeto de lei nº 527/2025 estipula que o cadastro deve abranger aqueles condenados por crimes contra as mulheres também. 

Uma discussão que deverá ser debatida no Senado em razão da aprovação do Projeto de Lei nº 3976/2020 na Câmara dos Deputados é a questão da castração química enquanto pena administrativa complementar, ou seja, determinar que aqueles condenados por crimes de pedofilia sejam submetidos a um tratamento hormonal para provocar disfunção erétil de forma forçada. Muitos especialistas entendem que isso poderá agravar o problema, pois o criminoso, uma vez posto em liberdade, poderia vir a delinquir utilizando outros meios cruéis para a prática desses crimes. 

2. No caso de Mato Grosso, a nova lei determina que apenas condenados com trânsito em julgado possam integrar o cadastro estadual. Já o cadastro nacional permite inclusão após condenação em primeira instância. Isso pode gerar conflitos ou insegurança jurídica? 

A questão de quando o Réu deverá ser inserido em tais cadastros é algo que merece debate pela comunidade jurídica. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 6620/MT foi bem claro ao afirmar que a inserção dos criminosos em tais cadastros deve se dar somente após o trânsito em julgado . Mas isso é discutível. Nos Estados Unidos, por exemplo, o registro como ofensor sexual depende de uma ordem judicial no dispositivo (parte final) da sentença, seja ela em primeira ou em segunda instância. No Brasil, algo semelhante acontece com a aplicação de inelegibilidade nas condenações por improbidade administrativa, em que a suspensão dos direitos políticos pode ser determinada por órgão judicial colegiado e não, necessariamente, decisão transitada em julgado.
É importante ficar claro que a inserção do cidadão em tais cadastros, apesar de se originar de um processo criminal, é considerada uma sanção complementar de natureza administrativa, o que reacende esse debate na comunidade jurídica a respeito da real necessidade de que ocorra o trânsito em julgado para inserção dos predadores em tais cadastros.

Acredito que a inclusão em tais cadastros somente deve ocorrer por decisão colegiada que confirmar em segundo grau de jurisdição a sentença condenatória, sem prejuízo de que o magistrado relator do recurso possa determinar, cautelar e imediatamente, a inserção no cadastro, a depender da gravidade da condenação e da necessidade social. Essa solução me parece mais acertada porque adota um meio termo entre a aplicação de medidas em primeira instância e a garantia de efetividade do cadastro, ao não se aguardar mais o trânsito em julgado para gerar efeitos concretos. 

3. A existência desses cadastros, com acesso público aos nomes de condenados, pode restringir ou impedir que essas pessoas ocupem cargos públicos ou disputem eleições, como no caso do vereador Thiago Bitencourt Lanhes Barbosa, preso por suspeita de envolvimento com menores e pornografia infantil? 

Na legislação atual, a inelegibilidade decorre da própria condenação criminal, naqueles crimes que estão previstos na Lei Complementar nº 64/1990 (Lei das inelegibilidades). O que gera a inelegibilidade do sujeito não é o cadastro em si, mas sim, a condenação por tais crimes por órgãos colegiados, não se exigindo o trânsito em julgado para tornar o criminoso inelegível. A título de exemplo, todos aqueles condenados por “tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos”, por órgão colegiado, são automaticamente inelegíveis. 

Recentemente, em maio de 2025, o STF concluiu que o TSE pode suspender a certidão de quitação eleitoral daqueles candidatos que não prestaram suas contas, por um período de 04 (quatro) anos (ADI 7677-DF). Se adotada a mesma linha de raciocínio, o TSE poderia suspender a quitação eleitoral daqueles candidatos que constarem no cadastro de pedófilos e eles não poderão concorrer. 

Eu consigo visualizar um futuro no qual após os cadastros sejam instituídos, a sociedade passe a exigir um reflexo ativo na elegibilidade desses cidadãos para que o cadastro seja aplicado de forma impositiva. 

Sobre os cargos públicos, a Lei nº 15.035/2024 não prevê, de forma autônoma, a vedação automática ao exercício de cargos públicos. No entanto, o cadastro poderá servir como elemento auxiliar em processos de análise de idoneidade moral e de verificação de requisitos legais para investidura em determinadas funções, especialmente concursos públicos que exigem esses requisitos. 

Para o Estado de Mato Grosso, o Projeto de Lei prevê expressamente a vedação na investidura em cargos públicos na administração pública estadual. 

4. Como o senhor avalia o veto presidencial à manutenção dos dados por dez anos após o cumprimento da pena? Isso pode enfraquecer a eficácia do Cadastro Nacional em termos de prevenção e proteção da sociedade? 

Olha, na minha avaliação, o período de 10 anos é razoável, a depender da gravidade do caso. Se de menor gravidade, 05 anos parecem suficientes.. Nos outros Países que utilizam o cadastro de ofensores sexuais (Austrália, Canadá e Estados Unidos) por padrão, este registro é realizado por um período que varia a partir de 05 anos, mas pode se prolongar por toda a vida, a depender do crime cometido. No Brasil, a vedação à penalidade perpétua é um princípio constitucional. Essa vedação está prevista no artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição, que estabelece que não haverá penas de caráter perpétuo. 

Entendo que cada situação deve ser analisada caso-a-caso, em concreto. Mas não é constitucional, nem mesmo proporcional, manter a inserção durante toda a vida do sujeito. A título de exemplo, o estupro de vulnerável prevê pena de 8 a 15 anos de prisão. Caso o cidadão seja condenado a 12 anos de prisão, por exemplo, seu nome seria mantido no cadastro por pelo menos 22 anos, pois mesmo que este criminoso tenha progressão de regime, a baixa no cadastro se dará somente com o cumprimento integral da pena e após o decurso do tempo previsto no cadastro. 

5. Quais são as aplicações práticas desses cadastros para a população em geral e para instituições públicas e privadas? Eles podem ser consultados por escolas, empresas ou prefeituras, por exemplo? 

Os cadastros de predadores sexuais, conhecidos em alguns sistemas jurídicos como sex offender registries, têm como finalidade primordial a prevenção de novos delitos e a proteção da coletividade. Nos Estados Unidos, a legislação federal exige que indivíduos condenados por determinados crimes sexuais sejam registrados em bancos de dados públicos, permitindo que cidadãos, escolas, empresas e autoridades locais consultem essas informações. 

No contexto prático, esses cadastros oferecem subsídios importantes para políticas de prevenção e controle. Nos Estados Unidos, instituições educacionais, organizações que atuam com crianças e adolescentes e empregadores de setores sensíveis utilizam as informações públicas dos registros para adotar medidas de precaução no processo seletivo e no monitoramento de funcionários. Prefeituras e polícias locais também se valem desses dados para desenvolver programas de vigilância comunitária. 

Nos Estados Unidos, o juiz, ao sentenciar o réu, fixa a distância mínima que estes ofensores devem ficar de escolas, berçários e creches. Essa medida pode ser adotada também pelos magistrados no Brasil, como forma de prevenção e dentro do poder geral de cautela. 

Outra aplicação prática que pode ser implementada é a proibição de contratação de pessoas inseridas no cadastro para funções públicas e privadas que envolvam qualquer tipo de contato com crianças e, a depender do caso, com o público.

Sobre o ponto central da pergunta apresentada, o Brasil adotará um modelo muito semelhante ao utilizado nos Estados Unidos, no qual uma página oficial do Governo manterá um cadastro público que pode ser acessado por qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica. É o que chamamos de transparência ativa (ou seja, o cidadão não precisará oficiar as autoridades para obter a lista de condenados, utilizando-se para tanto de uma lista pública). 

6. Após a regulamentação dos cadastros, tanto o nacional quanto o estadual, como o cidadão poderá acessar essas informações e quais cuidados devem ser tomados para evitar abusos ou perseguições injustificadas? 

 Atualmente, o PL nº 3.976/2020 delega a organização do cadastro nacional de pedófilos ao Conselho Nacional de Justiça, afirmando, expressamente, que constará a qualificação do condenado e, inclusive, sua fotografia.
O CNJ deve ficar responsável pela disponibilização de um sítio na rede mundial de computadores para que seja dado acesso ao cadastro e, ao mesmo tempo, deve adotar alguns cuidados para que a transparência ativa não seja utilizada de forma irrestrita, com o compromisso de que o cidadão que acessa o conteúdo não utilize para finalidades diversas daquelas previstas.

No âmbito estadual, a proposta legislativa determina que o Estado de Mato Grosso mantenha um cadastro público a ser disponibilizado na página da Secretaria de Estado de Segurança Pública, o qual pode ser acessado por qualquer cidadão, de qualquer parte do mundo.

Para evitar abusos ou perseguições injustificadas, a própria lei criou mecanismos, pois há a exigência de sentença condenatória. Caso ocorra algum abuso ou utilização indevida, o cidadão deve peticionar ao órgão público responsável pela divulgação do cadastro e, não resolvendo, deve buscar judicialmente sua exclusão. Observadas as determinações legais, uma vez inserido no cadastro é natural que o condenado tenha que suportar as limitações impostas pelas sanções aplicadas. De qualquer modo, o Judiciário deve zelar pela devida proporcionalidade e razoabilidade na utilização do cadastro.

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