Opinião

Quinta-Feira, 10 de Abril de 2025, 11h54

Suzimaria de Souza Artuzi

Cooperativa ou Banco? A Distinção Necessária na Recuperação Judicial

Suzimaria Maria de Souza Artuzi

 

No cenário da recuperação judicial, um dos debates mais técnicos e recorrentes diz respeito à natureza dos créditos oriundos de cooperativas de crédito. A Lei 11.101/2005, em seu art. 6º, §13 (introduzido pela Lei 14.112/2020), estabelece que os créditos decorrentes de atos cooperativos não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial. 

Com base nisso, muitas cooperativas buscam a exclusão de seus créditos da lista concursal. Contudo, como já reconhecido pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) e por diversos outros tribunais, esse enquadramento não pode ser feito de forma automática e desassociada da realidade prática das operações.

Atos cooperativos ou operações bancárias?

A distinção entre o que é, de fato, um ato cooperativo e o que se trata de uma operação bancária camuflada em roupagem cooperativista é essencial. O artigo 79 da Lei 5.764/71 define:

“Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.

Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.”

Portanto, operações de crédito garantidas por cédulas bancárias, com características similares às praticadas por bancos — como prazos, encargos financeiros e garantias — extrapolam os limites do ato cooperativo.

Renato Lopes Becho observa que “o ato cooperativo é aquele praticado entre a cooperativa e seus associados, ou entre cooperativas, com o objetivo de alcançar as finalidades sociais previstas em seus estatutos. Não se confunde com operações de mercado típicas de instituições financeiras tradicionais” (2019).

No mesmo sentido, a jurisprudência do TJMT, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 1000646-39.2025.8.11.0000, entendeu que a operação de crédito realizada por uma cooperativa com cédula de crédito bancário não se caracteriza como ato cooperativo e, por isso, deve ser tratada como crédito concursal, submetendo-se ao processo de recuperação judicial.

Segurança jurídica e impacto nos cooperados

Essa distinção tem reflexos práticos importantes. Quando a cooperativa tenta se afastar dos efeitos da recuperação alegando estar protegida por um suposto ato cooperativo, ignora-se que, em caso de deságio aprovado no plano, esse deságio será, em regra, absorvido pelos próprios cooperados — inclusive por cooperados que estejam, eles próprios, em recuperação judicial. É um evidente conflito de lógicas e interesses, que compromete o equilíbrio do sistema e a própria racionalidade da estrutura cooperativa.

O comportamento contraditório (ou venire contra factum proprium), de uma instituição que vota pela aprovação do plano e, ao mesmo tempo, tenta excluir seu crédito da recuperação, é justamente o que decisões como a do TJMT e de outros tribunais buscam evitar.

A posição da jurisprudência superior

O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou sobre o tema. No AgInt nos EAREsp 1.302.248/PR, relatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a Corte afirmou:

“A orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se admitir a aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor às relações travadas entre cooperados e cooperativas quando estas desenvolvem atividades equiparadas às instituições financeiras” (STJ, j. 20/10/2020, DJe 29/10/2020).

Ou seja, quando a cooperativa atua com a mesma lógica de mercado que os bancos, ela passa a ser tratada como tal. A forma jurídica não pode servir de escudo para práticas que, na essência, são típicas de instituições financeiras.

Conclusão

A diferenciação entre atos cooperativos e operações de natureza bancária é uma análise essencial dentro dos processos de recuperação judicial. O objetivo não é desqualificar o papel das cooperativas de crédito — que desempenham importante função no acesso ao crédito e no fortalecimento das economias locais —, mas sim assegurar que a legislação seja aplicada de forma técnica, justa e coerente com a natureza jurídica dos atos praticados.

Quando a cooperativa atua de forma semelhante às instituições financeiras tradicionais, sobretudo por meio de instrumentos típicos do mercado bancário, é necessário reconhecer que esses contratos se afastam da essência cooperativa prevista no ordenamento jurídico. O respeito à segurança jurídica e à isonomia entre os credores exige essa análise criteriosa, especialmente em um ambiente tão sensível quanto o da recuperação judicial.

Mais do que um debate teórico, essa distinção tem impacto direto na previsibilidade do sistema e na confiança de todos os envolvidos no processo. Manter a coerência entre forma e conteúdo jurídico é, portanto, um passo essencial para fortalecer tanto o instituto da recuperação judicial quanto o próprio cooperativismo, que deve ser preservado em sua vocação original. 

Referências bibliográficas

• BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/atos-cooperativos-negocios-cooperativos-e-atos-nao-cooperativos-elementos-de-direito-cooperativo/1201098918. Acesso em: 08 abr. 2025.

• PINHEIRO, Marcos. Cooperativas de Crédito: História da Evolução Normativa no Brasil. Brasília: Banco Central do Brasil, 2005. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/documents/outras_pub_alfa/livro_cooperativas_credito.pdf. Acesso em: 08 abr. 2025.

• MARION, Patrícia. Cooperativas de Crédito e Bancos: uma análise comparativa envolvendo a percepção dos cooperados/correntistas sobre o ser cooperado ou não. Universidade de Caxias do Sul, 2021. Disponível em: https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/8748/TCC%20Patricia%20Marion.pdf. Acesso em: 08 abr. 2025.

• FRIGHETTO, Rafael Carlos; MORAIS, Roberto Tadeu Ramos. Adequado Tratamento do Ato Cooperativo em Cooperativas de Crédito e Suas Diferenças na Aplicação do IOF e COFINS em Relação aos Bancos Comerciais. Revista Contábeis Faccat, v. 10, n. 2, 2017. Disponível em: https://seer.faccat.br/index.php/contabeis/article/view/1621/1070. Acesso em: 08 abr. 2025.

• Superior Tribunal de Justiça – STJ. AgInt nos EAREsp 1.302.248/PR, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, julgado em 20/10/2020, DJe 29/10/2020.

Sobre a autora

Suzimaria Maria de Souza Artuzi - Advogada proprietária do Escritório Advocacia Souza Artuzi, contadora, mediadora judicial inscrita no CNJ e TJMT, Administradora Judicial em Processos de Recuperação Judicial e Falências no TJMT. É Perita Contábil em processos cíveis no TJMT. Pós-graduada em Direito Tributário e em Direito Processual Civil. Associada ao Instituto Brasileiro da Insolvência (IBAJUD). Foi Tesoureira da OAB 22ª Subseção de Primavera do Leste – MT nas gestões 2016 à 2021. É Membro da Comissão de Estudos da Recuperação Judicial e Falências da OAB/MT (Gestão 2025/2027), Diretora Regional do Mato Grosso na CMR – Centro de Mulheres da Reestruturação Empresarial, membro do IWIRC Brazil e Diretora de Marketing do projeto #hashtagporelas. Atualmente, também preside a Comissão de Estudos e Recuperação Judicial da 22ª Subseção da OAB Primavera do Leste/MT.

 

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