Se a esquerda soubesse o que acontece nos porões dos grupos liberais e não-esquerdistas das redes sociais (especialmente Facebook e Whatsapp), depois que se findam as discussões sobre o PT, pararia de nos colocar todos no mesmo bolo e, quiçá, nem se daria mais ao trabalho de atacar a gente. Somos perfeitamente capazes de nos matar sozinhos. Vou tentar resumir:

Como disse em um texto recente, se identificar como liberal é muito fácil, e exige apenas bom senso. O problema é o que vem depois. Liberais não são simplesmente liberais e, portanto, todos amiguinhos, vivendo em harmonia. Nããão… se fosse simples, não teria a menor graça. A gente gosta de coisas difíceis e complicadas! Não à toa, liberalismo não é uma linha homogênea, mas um extenso campo, dentro do losango criado por Nolan, onde cabem diversos posicionamentos diferentes sobre diversos assuntos.

Para início de conversa, existem os left-libs (liberais mais à esquerda), right-libs (liberais mais à direita), libertários minarquistas (estado mínimo) e libertários ancaps (anarcocapitalistas). Esses últimos pregam a ausência completa de Estado, e se subdividem em gradualistas e agoristas. Com tantos ingredientes, é claro que a treta interna never ends.

Os right-libs chamam os left-libs de esquerdistas, e ficam deveras irritados com posicionamentos muito progressistas desses últimos. Costumam se preocupar mais com as questões econômicas e, apesar de não serem fãs de nenhum dos dois, são mais capazes de aturar Bolsonaro que Jean Wyllys.

Os left-libs, por sua vez, chamam os right-libs de conservas e se irritam quando esses se unem à direita em certos temas. Costumam dar mais ênfase às liberdades civis e, apesar de não serem fãs de nenhum dos dois, são mais capazes de aturar Jean Wyllys que Bolsonaro.

Um clássico tema divergente entre as duas vertentes é o aborto. Geralmente, os left são favoráveis, e os right são contra. Mas também existem lefts contra e rights favoráveis. Não, aborto não é um tema fechado entre os liberais, e qualquer página liberal que se aventure a assumir uma posição nesse debate corre sério risco de gerar uma treta sem tamanho, e acabar por perder seguidores. A discussão também costuma ser bastante acalorada e inconclusa em mesas de bar e grupos de Whatsapp.

Para além do aborto, as brigas entre left-libs e right-libs sobre outros temas foi bem acentuada na página nacional do PSL no Facebook, durante essas eleições, incluindo aí discussões internas (tensão, crise, tiro, porrada e bomba) sobre um tal post da black-bloc que apanhou da polícia (polícia = opressão estatal ou defesa das propriedades privadas que os black-blocs estavam destruindo?).

Há também a divisão entre minarquistas e ancaps. Os libertários minarquistas pregam que o governo cuide apenas das áreas essenciais (saúde, educação e segurança, os dois primeiros por meio de vouchers), e julgam que a ausência completa de Estado é tão utópica quanto o socialismo. Os ancaps, por sua vez, são discípulos do economista Murray Newton Rothbard, e consideram imoral toda e qualquer tentativa de intervenção estatal em qualquer campo. Em geral, ancaps e minarquistas até que conseguem conviver bem, exceto por uma subdivisão do primeiro grupo: os agoristas!

Libertários – ancaps – agoristas (tá ficando complicado…) acreditam que vão conseguir escapar das garras do governo de forma imediata, deslegitimando o poder do Estado com bitcoins e desobediência civil. Costumam chamar de parasita qualquer um que tente se aventurar na política, ainda que com o objetivo de diminuir o tamanho do Estado (sim, eu passei por isso). Agoristas são chamados carinhosamente de liberteens pelos minarquistas mais impacientes, e também por outro tipo de ancap: os gradualistas.

Libertários – ancaps – gradualistas, apesar de defenderem a ausência completa do Estado, admitem que o caminho até lá é lento e gradual, podendo ser feito, inclusive, por meio da política (!!). Para acompanhar as tretas entre esses grupos, recomendo visitarem o grupo Libertarianismo, no Facebook, com menção honrosa para o debate entre Fabio Ostermann (gradualista) e Paulo Koggos (agorista), que começou no Facebook e desembocou num bar de São Paulo, podendo ser encontrado no Youtube. O ex-ídolo dos agoristas, Raphael Lima, do canal Idéias Radicais, também passou por poucas e boas nestas eleições, por ter apoiado candidatos (libertários, mas não importa).

Achou complicado se encontrar nesse emaranhado ideológico? Talvez esse teste do EPL possa te dar uma luz: https://epl.org.br/diagrama-de-nolan/. Quanto mais pra cima, mais ancap. Quanto mais pra direita, mais right-lib. Quanto mais pra esquerda, mais left-lib.

Correndo por fora, há ainda os conservadores. (Não, liberal-conservador não existe, pois o termo conservador, por si só, já abriga a ideia de liberdade econômica). Esses se dividem em dois grupos: os que admitem liberais como aliados, por acreditar que há um inimigo muito pior a ser combatido; e os seres supremos da sabedoria e da moralidade, para quem todos os não-conservadores são esquerdistas e fim! Eu ia citar um exemplar desse segundo grupo, mas chega de treta por hoje. Vamos falar de coisa boa. E Lula, hein? Será que vai preso mesmo?

Priscila Chammas é jornalista em Salvador (BA)