Um ano de angústias, incertezas e saudade. É assim que Renata e Lívia, filhas do advogado Renato Gomes Nery, têm passado desde o assassinato do pai, em 5 de julho de 2024. Hoje, uma estrela na calçada marca o local exato onde ele foi baleado, quando chegava ao seu escritório, na avenida Fernando Corrêa da Costa, para iniciar o expediente de trabalho. Mesmo com 6 presos e uma complexa investigação ainda em curso, a família permanece com dúvidas sobre as reais motivações, o valor "investido" na empreitada criminosa e se haveria mais interessados na morte do jurista, que atuava em ações fundiárias e há poucas semanas havia feito denúncias à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT).
Em conversa com o GD, as filhas relembram o início da carreira do pai até o fatídico dia da morte. Filho de pais nordestinos que vieram para Mato Grosso em busca de uma vida melhor, Renato nasceu em Alto Coité, distrito de Poxoréo (251 km ao Sul). Com apenas uma semana de vida, quase morreu devido à uma infecção. O nome Renato veio como forma de renascimento, e também o inspirou décadas mais tarde a batizar a filha Renata e o seu caçula. Somente Lívia, a filha do meio, não herdou o "nome da sorte".
De família humilde, sempre acreditou no estudo como meio para mudar de vida. Era conhecido por viver com a cara nos livros. Sem energia elétrica, estudava dentro do fusca da família. Já na Capital, Renato concluiu o segundo grau e posteriormente ingressou no ensino superior. Formou-se pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) na primeira turma de direito. Também lecionou história e se especializou em ciências políticas.
Em uma palavra, as filhas o definem como “obstinado”. Inconformado com injustiças, advogou gratuitamente para muitas pessoas, das quais elas só foram conhecer no dia de seu velório. Discreto na vida pessoal, muitos dos amigos nem chegaram a saber que um dia ele enfrentou um tratamento de câncer. Articulista do jornal A Gazeta há anos, seu passatempo era a leitura e a escrita. Levava uma vida com absoluta normalidade e rotina, diferentemente de uma pessoa que sentia que estivesse em risco, segundo as filhas.
“Ele não tinha inimigos, nem estava mais pegando causas, não acreditava em retaliação que não fosse pelo meio jurídico. Andava a pé, tinha uma rotina tranquila, ia na padaria, no pilates, não tinha seguranças, carro blindado, nada disso. [...] Ele estava feliz, com namorada nova, tinha feito um almoço em casa para apresentar ela à família. Os casos dele estavam se resolvendo, era uma fase boa. Dias antes tinha sido aniversário da minha tia e comemoramos, teve aniversário do meu filho, não tinha nada que nos fizesse desconfiar de algo”, relembra Lívia.
Conceituado no direito mato-grossense, Nery chegou a integrar lista sêxtupla e a tríplice para vaga como ministro no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ex-presidente da OAB-MT e ex-conselheiro federal, atuou para grandes empresas, na área cível e em casos de direito agrário, este último considerado a causa de sua morte.
Disputa de terras e posseiros ilegais
Renato começou a atuar em ações agrárias por volta da década de 1980. Segundo as filhas, o pai nunca gostou de fazendas ou do ambiente rural, no entanto, aceitou advogar em favor de um homem de nome Manoel Fernandes, falecido em 2010, que havia comprado em 1982 uma área de 12 mil hectares em Novo São Joaquim (439 km de Cuiabá). No entanto, uma mulher de nome Maria Selma, entrou com uma ação judicial alegando que, destes, 5 mil hectares lhe pertenciam.
Por sentença, ela conseguiu a área total para si. Em 1988, Fernandes buscou Renato para substituir sua defesa e o processo foi transferido. Após anos de recursos, a parte que cabia ao fazendeiro foi restituída e 20% da área ficou para o advogado em pagamento aos honorários advocatícios, conforme combinado desde o início. Em 2016, uma perícia no local indicou que centenas de posseiros estavam ilegalmente na terra há décadas. Por determinação judicial, ocorreu reintegração de posse para retirada dos invasores. Dentre estes, estava o casal César Jorge Sechi e Julinere Goulart Bastos.
De acordo com o amigo de longa data de Renato, o também advogado Walmir Cavalheri, os Sechi chegaram a buscar pessoalmente o advogado em Cuiabá, em seu escritório, por duas vezes e em outras oportunidades enviaram terceiros. Diante disso firmaram acordo e arrendaram a terra, mas, segundo Cavalieri, nunca pagaram corretamente, sendo novamente retirados.
Apesar disso, Renato Nery nunca relatou às filhas sobre se sentir ameaçado. “Nós acreditamos, pelas investigações até agora, que o crime não foi contra o advogado, foi pela pessoa física, foi uma situação de vingança, não foi esclarecido ainda, mas ao que tudo indica…”, avalia Renata.
Dia da execução
“Foi tudo muito rápido”, é como Renata descreve a manhã do dia 5 de julho de 2024. Uma funcionária que fazia a limpeza do prédio subiu as escadas correndo e avisou que Renato estava caído, sangrando, na calçada. Renata e Cavalieri, que trabalham no mesmo prédio, desceram para socorrer o ferido e em segundos várias viaturas policiais chegaram ao local. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) chegou em seguida.
Inicialmente, Cavalieri achou que se tratava de um atropelamento, mas viu as cápsulas no chão. Junto a Renato, a filha Renata foi na ambulância. Em meio a tentativas de intubação, o advogado perdia muito sangue e já não estava consciente. Lívia, que estava a caminho do prédio, soube do fato por ligação e foi diretamente ao hospital.
Em aplicativo de celular, as filhas buscaram as imagens das câmeras de segurança e viram o momento em que o pai foi baleado por um motociclista e se questionavam sobre quem poderia ter atirado contra a vítima.
Lívia relata que um dos momentos mais dolorosos para a família foi a ida até o hospital e a internação do pai.
“Desde o início houve julgamento das pessoas. Fomos tratados como bandidos, nos perguntavam o que meu pai tinha ‘aprontado’ para ser ferido daquela forma. [...] Um policial veio me pedir o celular dele, mas eu falei que meu pai estava vivo, que deveria pedir a ele, foi quando o policial disse ‘ou você me entrega o celular ou você vai ser presa’. Eu disse que só entregaria com um mandado, porque eu não sabia quem era polícia e quem não era, tinha muitas pessoas que vinham falar comigo”, desabafa.
No hospital, dezenas de conhecidos, amigos, advogados e jornalistas se aglomeravam. Lívia pegou o celular do pai com a irmã e, ao descobrir a senha, vasculhou o aparelho em busca de indicativos de ameaça ou atritos. No entanto, encontrou apenas centenas de mensagens e ligações perdidas de pessoas que já estavam sabendo do atentado e queriam atestar a veracidade diretamente com Renato.
Comovidos com o ocorrido e diante da gravidade do estado de saúde de Renato Nery, enfermeiros permitiam visitas frequentes das filhas à UTI, prevendo que ele não resistiria aos ferimentos. O advogado passou por cirurgia para liberação da pressão intracraniana e estava em observação, porém, o óbito foi confirmado às 5h15, do dia 6 de julho. A família foi avisada e procurou trâmites do velório.
Laudo da perícia indicou que, das 7 balas, uma atingiu Renato na nuca e ficou alojada na cabeça. Após necropsia, a despedida começou na tarde do dia 6 de julho, com sepultamento no dia 7, pela manhã.
Cronologia das investigações
Sem norte ou qualquer pista do que poderia ter motivado tamanha brutalidade contra o pai, as filhas de Renato e o advogado Cavalieri buscavam respostas. Visto como combativo, Renato havia feito diversas representações na OAB. Contudo, de imediato pensaram na questão agrária, as ações mais delicadas tratadas pela vítima. Após meses e com poucas informações das autoridades policiais, as filhas resolveram espalhar outdoors pela cidade cobrando justiça. Tudo que tinham eram as imagens das câmeras de segurança do prédio e também do programa Vigia Mais MT na rua.
Julho de 2024
Sargento aposentado da Polícia Militar, Omigha de Lima Oliveira, é alvo de operação por suspeita de envolvimento no assassinato de Renato. Investigadores cumpriram um mandado em Guarantã do Norte (595 km ao norte de Cuiabá), um na Capital e outro em Várzea Grande. Ele já foi alvo de diversas denúncias, como, por exemplo, uma do Ministério Público de Mato Grosso (MPMT), de 2019, por homicídio. Durante a ação da Polícia Civil, apresentou resistência e se negou a entregar duas armas registradas, com calibres 9mm, mesmo usado no homicídio no dia 5 de julho, em frente ao escritório do advogado em Cuiabá.
Novembro de 2024
Foi deflagrada a Operação Office Crimes, que movimentou a cena policial e o meio jurídico cuiabano. Mandados foram cumpridos em endereços residenciais e escritório de advocacia nas cidades de Cuiabá e Primavera do Leste. O casal César Jorge Sechi e Julinere Goulart Bastos estavam entre os investigados, além dos advogados Antônio João Carvalho Junior, Gaylussac Dantas de Araújo e Agnaldo Bezerra Bonfim. Na ação foram apreendidas armas, barras de ouro, notebook e munições.
Pouco mais de 10 dias antes de morrer, Renato Nery havia ingressado com uma representação disciplinar contra um advogado, denunciando irregularidades na disputa judicial de terra. Na peça, Renato Nery acusava o advogado Antônio João de ser proprietário de um “escritório do crime” e agir ilegalmente na disputa pela terra em Novo São Joaquim, em conluio com filhos de desembargadores e magistrados para vencer a causa.
Março de 2025
É deflagrada a Operação Office Crimes – A Outra Face, com 6 ordens de prisões e dois de busca e apreensão. Um dos alvos, o policial militar Heron Teixeira Pena Vieira estava foragido, mas se apresentou na Delegacia de Homicídios e Proteção a Pessoa (DHPP) um dia depois. Ele atuava no setor de inteligência do Batalhão da Rotam. As investigações apontaram que uma chácara alugada em seu nome no bairro Capão Grande, em Várzea Grande, era frequentada por ele e demais policiais investigados, sendo uma espécie de “sede” de reuniões de crimes.
Também foram alvos da operação os militares Leandro Cardoso, Wailson Alesandro Medeiro Ramos, Jorge Rodrigo Martins, Wekcerlley Benevides Oliveira e o caseiro da chácara de Heron, o civil Alex Roberto de Queiroz Silva, apontado como o executor do advogado Renato Nery.
25 de abril de 2025
Os militares Leandro Cardoso, Wailson Alesandro Medeiros Ramos, Jorge Rodrigo Martins e Wercelley Benevides de Oliveira prestam depoimento ao delegado que preside o inquérito, Bruno Abreu. Eles são investigados por simular suposto confronto em que um adolescente morreu e outros dois foram baleados para inserir a arma que matou Nery no local do crime.
Com base em perícia nos celulares, foi descoberto ainda um grupo denominado “Gol Branco”, devido ao modelo do carro que teria sido roubado pelo trio e revelou que os militares mantinham fotos de Renaro Nery no celular, assim como pesquisas relacionadas a sua morte. Apesar de presos por um período, foram soltos e estão sob uso de tornozeleira.
9 de maio de 2025
São presos a empresária Julinere Goulart Bastos e o marido César Jorge Sechi, apontados como os mandantes do assassinato do advogado. No mesmo, dia foram transferidos de Primavera do Leste para a Capital, em mais um desdobramento da Operação Office Crimes - A Outra Face.
15 de maio de 2025
Heron foi o primeiro a confessar a participação do crime, em segundo depoimento. Alex disse que desde o início sabia que o crime foi a mando de um casal de fazendeiros de Primavera do Leste e confessou que matou Renato. De acordo com as apurações, o policial militar foi o intermediário contratado para fazer o “serviço”. Ele conseguiu a arma de fogo usada no homicídio e foi quem repassou a arma para o caseiro da chácara, que pilotou a motocicleta Honda Fan até o local do crime e efetuou os disparos. A pistola adaptada virou uma verdadeira metralhadora, ampliando o raio dos disparos. Alex admitiu que aceitou cometer o crime porque estava com muitas dívidas junto a agiotas. Quanto ao montante recebido, disse que o combinado teria sido R$ 200 mil.
26 de junho de 2025
Os policiais militares Jackson Pereira Barbosa e Ícaro Nathan Santos Ferreira são denunciados pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPMT), por envolvimento no homicídio. De acordo com a denúncia, ambos atuaram como intermediários em uma cadeia criminosa que culminou na execução da vítima sob a coordenação de Heron.
Hoje
Atualmente, estão presos o casal investigado como mandante do crime, Julienere Goulart Bastos e César Jorge Sechi; o atirador Alex Roberto de Queiroz Silva, e os policiais militares Heron Teixeira Pena Vieira, Ícaro Nathan Santos Ferreira e Jackson Pereira Barbosa. Chegaram a ser presos mas foram soltos em poucas semanas os 4 policiais militares da Rotam, que continuam investigados: Wailson Alessandro Medeiros Ramos, o sargento PM Leonardo de Oliveira Penha, o sargento PM Jorge Rodrigo Martins e o soldado Wekerlley Benevides de Oliveira.
“Eu tenho dúvidas se só o casal é o mandante. Eram mais de 100 pessoas ilegalmente na área e perderam a terra. A gente não sabe se esse valor de R$ 200 mil foi só isso. Foi mesmo vingança?”, reflete o advogado Walmir Cavalheri.
“Estamos falando de policiais da Rotam, que tem cargo, tem salário fixo, carreira, pega R$ 200 mil e divide por essas pessoas, não dá nem R$ 20 mil para cada, eles tinham salário de R$ 12 mil. É pouco por um trabalho de risco tão alto”, questiona Lívia.
A vida mudou do dia para a noite. Mesmo de frente para o local onde o pai foi baleado, as filhas decidiram permanecer no prédio que pertencia ao pai e que as daria como herança. Formadas em administração, ainda trabalham por lá e pretendem reformar o prédio, que deve se chamar Edifício Renato Gomes Nery em homenagem ao jurista. A estrela na calçada é uma marca para não esquecer o ocorrido, ainda que isso seja impossível.
“Tem dias que é tranquilo e tem dias que eu lembro, mas a estrela foi uma ideia que me deram e agora está me trazendo lembranças. Tento ressignificar, porém no começo foi difícil as cenas vem a mente, mas o tempo vai amenizando, não existe passar a dor, mas diminui. A gente vai entendendo e tentando seguir em frente, fazendo terapia. [...] Ele deu a vida pela justiça e morreu injustamente. Então, é preciso que a justiça seja feita para que a gente siga nossa vida em paz”, afirma Renata.
“Apesar do alívio, ainda nos questionamos: estamos seguras? Até que ponto? Quem fez isso com meu pai é capaz de qualquer coisa. Nós nos acostumamos com a vida na nova realidade, mas não significa que estamos seguras. O processo ainda está em andamento”, desabafa Lívia.
MARIA TAQUARA
Sábado, 05 de Julho de 2025, 17h00Anonimos
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