Com 1.754 denúncias de maus-tratos cometidos contra crianças e adolescentes, os Conselhos Tutelares de Cuiabá registram um aumento de 533% nos casos desta natureza em 2013, em relação ao ano anterior. Em 2012, a mesma reclamação gerou 277 visitas. A realidade local coincide com o cenário nacional. Relatório do Disque 100 aponta que 92% das denúncias relacionadas a violência física tratavam-se de maus tratos.
Apesar do crescimento da demanda, a cidade continua com estrutura deficitária para prestar o atendimento adequado e continuado. Na Capital, existem apenas 2 Centros de Referencia Especializados de Assistência Social (Creas) para atender o público infanto-juvenil. O espaço é responsável ainda pelo atendimento de vítimas de violência sexual e idosos.
Para a coordenadora geral dos Conselhos Tutelares de Cuiabá, conselheira Flávia Cristina Silva Carvalho, o aumento das notificações é relacionada a informação e conscientização da população sobre a necessidade de proteger o público infanto-juvenil. Com 570 mil habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Cuiabá conta com 30 conselheiros que atuam em 6 unidades e um plantão. No ano passado, foram realizados 13.367 atendimentos, sendo 806 casos envolvendo famílias já visitadas pelos conselheiros. Em 2012, foram 10.352 ocorrências.
Flávia lembra que violência contra a criança e adolescente sempre existiu, porém houve uma ampliação das ferramentas para denunciar, como o Disque 100, e o conhecimento sobre os direitos deste público faz com que as pessoas recorram mais aos Conselhos Tutelares. Frisa ainda que muitas denúncias que chegam as unidades são falsas, mas todas são averiguadas. “Tem pessoas que para se vingar de alguém faz a falsa denúncia”.
Promotor da Vara da Infância e Juventude, José Antônio Borges acredita que os dados trazem a tona as “cifras ocultas” da violência cometida contra a criança. Lembra que passamos por um processo de transformação cultural, em relação a educação, sem agressão. “Existe muita diferença entre educar e bater. O castigo físico é cultural. O próprio Código Civil, no artigo 1.638, autoriza o
castigo, que é bater, moderado. Mas o que é esse moderado?”
Os abandonos físico e intelectual também são entendidos como forma de maus-tratos. Em setembro passado, uma criança de 8 anos foi encontrada em uma “boca de fumo” do bairro Boa Esperança. Ela procurava a mãe depois de acordar em casa sozinha. Vizinhos afirmaram que a menina era abandonada com frequência pela mulher, que saia para beber em bares da região. No mesmo dia, um bebe de 4 meses foi resgatado pela própria família, depois de ser agredido com tapas no rosto. As duas mulheres foram encontradas embriagadas e foram presas.
Flávia relata que além da questão cultural de que bater é educar, muitas crianças são vitimadas pela falta de estrutura familiar, além do consumo de álcool e drogas pelos adultos. A maior demanda de atendimento ocorre na região do Pedra 90, onde foram registradas 2.313 denúncias. Destas, 189 eram relacionadas a maus-tratos. Na sequencia está o Coxipó, com 1.888 atendimentos. As duas unidades ficam na região Sul e as vítimas são atendidas pelo Creas do CPA.
A coordenadora explica que o Centro de Referencia promove o atendimento psicossocial e deveria ofertar o acompanhamento da criança, adolescente e família. Mas o número de equipes é insuficiente para o desempenho de um bom trabalho. “O Conselho Tutelar do CPA realizou 1,2 mil atendimentos de denúncias. A população do bairro já ocupa todo o tempo disponível da única psicóloga do Creas. É impossível que somente uma profissional de conta de todo o serviço”.
Consultora da Agencia de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), socióloga Graça Gadelha, entende como problemática a situação de vítimas sem atendimento adequado. Aponta que é indispensável a disponibilização de aparelhos de assistência psicossocial, como forma de garantir direitos e permitir um desenvolvimento infanto-juvenil digno. Além de prestar o atendimento psicológico, o Creas tem o papel de reinserir as vítimas na sociedade e seio familiar. “A criança afetada precisa recompor a sua autoestima e confiança para um desenvolvimento sem traumas. É direito dela e dever do Estado promover o atendimento, acolhimento e orientação da família, de forma que esse tecido que foi profundamente prejudicado seja restabelecido”.
Para surtir o efeito satisfatório no psicológico infantil ou juvenil, é necessário um acompanhamento continuado. Assim, a rotatividade de profissionais nas unidades públicas é apontada como mais um ponto falho do Poder Público e prejudicial para a vítima. Graça entende que ao substituir um profissional existe uma quebra de confiança, que precisa ser novamente restabelecida com a criança. “A violência resulta em traumas que a criança leva para o resto da vida. Essas marcas precisam ser trabalhadas para que exista uma melhoria na qualidade de vida dessa pessoa. A ausência desse acompanhamento pode causar danos irreversíveis”.