Sandra Moreira de Souza da Silva Miranda, 31 anos, natural de Paranatinga (MT), que atua como diarista, e Guiolan Aguiar Vieira, 37 anos, natural de Gurupi (TO), auxiliar de enfermagem, encontravam-se em situação de rua há cerca de 30 dias após serem demitidos da fazenda onde trabalhavam em Planalto da Serra (256 km de Cuiabá). Na bagagem até Rondonópolis (212 km de Cuiabá) havia somente a esperança de resolver pendências com a Caixa Econômica Federal e, principalmente, conseguir novos documentos, já que perderam os seus. Isso porque Guiolan contava com o dinheiro da rescisão, mas não conseguiu acessá-lo sem a documentação necessária.
“Decidir ficar na rua não foi fácil, mas foi a única saída que encontramos no momento”, disse Sandra. No Mutirão PopRuaJudMT, realizado no mês de maio, em Rondonópolis (212 km de Cuiabá), eles buscaram prioritariamente a documentação, mas também informações sobre oportunidades de emprego e como conseguir benefícios. Também olham para o futuro com a esperança de ter um lugar para morar novamente, algo que nunca precisaram buscar antes. “A gente aprende muito com a dor e passamos a dar valor às coisas. Mas sabemos que isso é só por um tempo. Graças a Deus viemos até esse mutirão”.
Já a história do pedreiro *Miguel, 40 anos, revela outros caminhos que levam à vulnerabilidade social. Para ele, a situação de rua foi motivada por problemas familiares. “Decidi sair de casa ‘meio na doida, sem planejar’”. Mas não conseguiu encontrar trabalho como pedreiro. A falta de serviço o levou ao consumo excessivo de bebida, uma fuga para “esquecer os problemas”. Porém, apesar de estar em situação de rua, Miguel não se "entregou" à condição e está sempre disposto a trabalhar quando surge a oportunidade. Ele observa que muitos outros moradores de rua acabam se entregando à situação, tornando mais difícil o retorno à sociedade.
Ele afirma que seu tempo na rua é de "temporada", já que oscila entre períodos morando na rua e períodos trabalhando. No mutirão, ele buscou apenas o kit de higiene/roupa e informações, pois seus documentos estavam em dia. Embora esteja em situação de rua, Miguel* tem contato com sua família, que desconhece sua situação atual. “Quero mostrar ao meu pai que consigo me sustentar e ter sucesso sozinho. Quero voltar melhor do que saí, com um teto para morar e uma moto”.
Na contramão do senso comum que reduz a população em situação de rua a estigmas como "preguiçosos", "vagabundos" ou "viciados", histórias como as de Sandra, Guiolan e Miguel revelam realidades complexas e marcadas por rupturas sociais, econômicas e afetivas. Como destacou o professor Juliano Batista dos Santos, na véspera do mutirão, “nas ruas não se vive, se sobrevive”. Segundo ele, ao compartilhar suas trajetórias durante o Mutirão, esses cidadãos expõem um cenário de perdas, mas também de resistência e esperança.
Além de reforçar a importância de políticas públicas eficazes, as narrativas ouvidas durante a ação desconstroem os paradigmas que desumanizam. “Eles não se veem apenas como moradores de rua, mas como pessoas em transição, em busca de novas oportunidades”, observou o pesquisador. Em comum, todos carregam a vontade de reconstruir a própria história. A presença do Judiciário, de forma ativa e empática, além de garantir direitos, também escancara o potencial transformador da escuta e da proximidade. Ao visibilizar essas vidas, o mutirão reafirma que ninguém deve ser definido apenas pela condição em que se encontra.
Evento histórico – Essa foi a primeira edição do Mutirão PopRuaJud/MT em Rondonópolis, coordenado pelo Poder Judiciário de Mato Grosso em parceria com a Defensoria Pública e dezenas de instituições. Essa ação de cidadania é coordenada nacionalmente pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 425 de 2021, que instituiu a Política Nacional Judicial de Atenção às Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades. A iniciativa representou um espaço de esperança, acolhimento e recomeços para as pessoas em situação de rua e vulnerabilidade. Com mais de 1,2 mil atendimentos realizados, sendo aproximadamente 500 deles somente na área da saúde, a ação marcou profundamente todos os envolvidos, incluindo operadores do Direito, servidores e voluntários, que sentiram um novo sentido para a promoção da Justiça.
O desembargador Mário Roberto Kono de Oliveira atua como presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec). Ele é coordenador do Comitê Multinível, Multissetorial e Interinstitucional para a Promoção de Políticas Públicas de Atenção às Pessoas em Situação de Rua (CMMIRua-PJMT) e membro do Comitê Nacional PopRuaJud. O magistrado classificou o mutirão como um "divisor de águas", provando que o Sistema de Justiça deve atuar de forma integrada e ser social. Além disso, garante que a dignidade não seja negada a ninguém e enfatizou que justiça social é feita com presença, escuta e humanidade.
A defensora pública-geral Maria Luziane Ribeiro de Castro destacou a importância de um Sistema de Justiça que vá ao encontro da população, especialmente das pessoas em situação de vulnerabilidade. Segundo ela, o Mutirão PopRuaJud representa, na prática, o exercício da cidadania, reunindo diversos parceiros em uma ação conjunta que consegue, de forma simples e rápida, resolver questões que, no dia a dia, são dificultadas pela burocracia. “Em apenas um dia, essas pessoas têm acesso a soluções concretas e retomam, ainda que parcialmente, sua dignidade”, afirmou. Para Luziane, essas ações reafirmam que a condição de estar em situação de rua é temporária e reversível, e que o papel da Justiça é justamente tornar visível quem foi historicamente ignorado, promovendo transformação social real.
A diretora do Fórum de Rondonópolis, juíza Aline Luciane Ribeiro Viana Quinto Bissoni, destacou a importância e o impacto do Mutirão PopRuaJud na cidade, classificando-o como um verdadeiro presente para a Comarca. Segundo ela, o evento, idealizado pelo CNJ e conduzido com sensibilidade pelo desembargador Mario Kono de Oliveira, rompe com a imagem de um Judiciário distante e mostra uma nova fase da instituição que é mais humana, acessível e próxima da população. “Estou vendo a felicidade no rosto de pessoas. Isso devolve cidadania e dignidade, sem julgamentos, respeitando cada história e cada indivíduo”, afirmou.
No mesmo sentido, o juiz coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) de Rondonópolis, Wanderlei José dos Reis, viu o mutirão como a prova de que o Judiciário "saiu dos gabinetes", interagindo com a sociedade e fazendo a diferença, cumprindo um novo papel esperado. Além disso, segundo ele, o Mutirão PopRuaJud em Rondonópolis mostrou uma resposta concreta às críticas históricas feitas ao Poder Judiciário. Para ele, ações como essa rompem com a imagem de um Judiciário moroso e distante da população, ao oferecer soluções antes mesmo que os conflitos se tornem processos judiciais.
“Estamos aqui para promover diálogo, olho no olho, e evitar que essas pessoas vulneráveis entrem em conflito com o Judiciário. Nosso papel é levar a Justiça até elas, de forma acessível e resolutiva”, afirmou. Já o juiz federal José Joaquim de Oliveira Ramos destacou o valor simbólico da mobilização, que enriqueceu aqueles que buscaram promover cidadania e dignidade.
A iniciativa também contou com a presença do vice-governador Otaviano Pivetta, do prefeito de Rondonópolis, Claudio Oliveira, além de secretários, vereadores e outras autoridades estaduais e municipais. Pivetta reforçou que o resgate da dignidade dessas pessoas é um dever do Estado, e que o governo tem o compromisso de criar as condições para que ações como essa sejam realizadas em todo o território. Já o prefeito parabenizou o Poder Judiciário pela sensibilidade e engajamento. “O Judiciário está fazendo o que precisa ser feito: enxergar e agir. Isso é Justiça de verdade. E estaremos sempre juntos para apoiar”, completou.
Depois de anos, solução em poucas horas – Por meio de uma atuação integrada entre o Judiciário, Justiça Federal, Defensoria Pública e INSS, histórias marcadas por espera de decisões da Justiça ganharam novos rumos com agilidade, empatia e justiça.
Mizael Alves Pinto, de 53 anos, vive nas ruas há quatro anos e aguardava, há três, o reconhecimento do Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS). A situação foi resolvida no mutirão em apenas duas horas, com a realização da perícia e audiência de conciliação. “O que estava enrolado há três anos, resolvemos em duas horas. Foi um atendimento de dez mil vezes dez”, disse emocionado. Mizael teve o benefício concedido com pagamento retroativo desde 2021 e agora sonha em alugar um lugar e reconstruir a vida com dignidade.
Já Maria Antônia*, de 44 anos, com deficiência intelectual e moradora de uma instituição de acolhimento, enfrentava um impasse de identificação que bloqueava o acesso ao benefício por invalidez. Graças à atuação integrada no mutirão, o conflito foi resolvido e o direito reconhecido, também com pagamento retroativo. “Fomos ao mutirão para resolver a documentação e saímos com a aposentadoria por invalidez garantida. Foi uma conquista imensa para ela”, relatou Ana Mariza Panes, diretora da instituição.
Enquanto isso, Jozi Caroline Dorileo, 32 anos, mulher trans, teve acesso, pela primeira vez, ao documento com seu nome social. A mudança foi solicitada há cinco anos e ela nem sabia que já estava disponível. Retirou a nova certidão no stand do Registre-se!, ação da Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ). Nascida José Henrique, Jozi está em situação de rua há quase um ano. “Perdi tudo depois que pedi demissão e não recebi meus direitos. Mas hoje, me deram a certeza de que não estou sozinha. Tomei banho, ganhei roupas, documentos, orientação jurídica… Foi muito mais do que imaginei. Agora quero voltar a trabalhar e reconstruir minha vida”, contou emocionada.
Assim como Mizael, Jozi e Maria Antonia*, durante o Mutirão PopRuaJud em Rondonópolis 119 atendimentos estiveram diretamente ligados ao Judiciário, incluindo serviços prestados pelo Tribunal de Justiça, Justiça Federal, Defensoria Pública, INSS e Procuradorias.
Saúde – O Mutirão PopRuaJud em Rondonópolis não apenas garantiu o acesso à Justiça, mas também ofereceu cuidados à saúde de pessoas em extrema vulnerabilidade, revelando-se uma ação de cidadania integral. Durante os atendimentos, mulheres foram diagnosticadas com lesões pré-cancerígenas e casos iniciais de câncer, graças aos exames preventivos realizados por ginecologistas voluntárias no local. A identificação precoce foi fundamental, já que lesões que poderiam evoluir para um câncer invasivo em menos de 12 meses. Agora poderão ser tratadas com intervenções menos agressivas, preservando a saúde e a vida dessas pacientes.
Além dos atendimentos ginecológicos, o mutirão realizou mais de 50 consultas oftalmológicas, muitas delas seguidas pela entrega imediata de óculos, por meio de parcerias com óticas solidárias.
Serviços - O leque de serviços oferecidos foi amplo, visando a cidadania e dignidade integral. Incluiu atendimentos jurídicos (estadual e federal), emissão/segunda via de documentos (RG, CIN, CPF, título de eleitor, certidão de nascimento), consultas a benefícios sociais, e uma vasta gama de serviços de saúde (incluindo diagnósticos de condições graves como câncer), além de cadastro no SUS e CAD Único, regularização militar, perícia médica, avaliações especializadas (odontológica, oftalmológica, psicológica, social), testes rápidos e vacinação. Houve também ações de cuidado e bem-estar, como corte de cabelo, banho solidário, doação de kits de higiene, refeições e roupas, tudo com acolhimento humanizado e foco na reintegração social. Nem os cães em situação de rua foram deixados de lado. Reconhecendo que, para muitas pessoas em vulnerabilidade, esses animais são os únicos e mais leais companheiros, a ação também ofereceu cuidados a eles. Paralelamente, a 3ª Semana Nacional do Registro Civil – “Registre-se!”, promovida pela CGJ-MT no mesmo local, combateu o sub-registro, realizando 82 atendimentos e garantindo documentação gratuita.
Para o desembargador Mário Kono de Oliveira, ações como as realizadas no mutirão vão além da prestação pontual de serviços, uma vez que também representam uma estratégia efetiva de prevenção e desjudicialização de conflitos, com impacto direto na redução da sobrecarga do sistema de Justiça. Ele explica que, ao oferecer atendimentos médicos, apoio jurídico e encaminhamentos sociais, o Judiciário atua de forma integrada com outras instituições, solucionando demandas que, se negligenciadas, gerariam processos futuros nas áreas da saúde, do direito de família e até da esfera criminal.
“Quando você acolhe uma pessoa com dependência química, por exemplo, e encaminha para tratamento, está prevenindo uma reincidência futura. Quando garante acesso ao SUS, evita ações judiciais por atendimento médico. Quando regulariza um vínculo familiar, evita litígios de guarda, pensão ou herança”, explicou o magistrado. Para ele, o mutirão representa um equilíbrio entre ações preventivas e resolutivas. “Soluciona-se o que já está em andamento, mas também impede que novos conflitos sejam judicializados. É um ganho social, humano e também estrutural para o Judiciário”.
Segundo o desembargador, o investimento em cidadania por meio do PopRuaJud tem custo-benefício evidente, já que evita o acúmulo de processos, melhora a eficiência institucional e, principalmente, resgata a dignidade de pessoas que, muitas vezes, só enxergam o Estado quando são penalizadas e não quando mais precisam de apoio.
Por isso, os resultados e a organização do mutirão em Rondonópolis serão levados pelo magistrado ao Comitê Nacional PopRuaJud no CNJ, por acreditar que a experiência pode inspirar outras regiões do país, mostrando que o tempo de um Judiciário "fechado" está ficando para trás. A iniciativa está alinhada à Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua do CNJ, que orienta o Judiciário a atuar de forma integrada e humanizada para promover o acesso à justiça dessa população invisibilizada.