O caminho que uma vítima faz para denunciar um caso de abuso ou exploração sexual é doloroso, solitário e, muitas vezes, marcado pela falta de apoio. Embora os registros cresçam de forma alarmante a cada ano, a subnotificação permanece como uma problemática persistente. No caso de crianças e adolescentes, a situação é ainda mais preocupante.
“Acreditamos que sempre houve e ainda há subnotificação. Muitos casos acontecem no âmbito familiar, então não são trazidos à tona com rapidez. São pessoas que têm relação próxima da criança e do adolescente, um vínculo de confiança, e elas demoram para reconhecer que são vítimas de abuso, porque, na percepção delas, que ainda não é plenamente desenvolvida, nem entendem que quem deveria proteger está lhe causando um mal”, descreve ao GD a promotora de Justiça Daniele Crema da Rocha de Souza, do Núcleo da infância e juventude do Ministério Público de Mato Grosso (MPMT).
Dados da campanha Maio Laranja apontam que, a cada hora, 3 crianças são vítimas de abuso no Brasil, mais da metade têm entre um e 5 anos. Anualmente, 500 mil crianças e adolescentes são explorados sexualmente no país e há dados que sugerem que somente 7,5% dos crimes são denunciados às autoridades. Como agravante, levantamento do Ministério da Saúde mostra que familiares e conhecidos das vítimas são responsáveis por 68% dos casos de violência sexual contra crianças de zero a 9 anos no Brasil.
“Embora a gente saiba que criança e adolescente são prioridades, constitucionalmente falando, vemos que isso não existe na prática. Todos os dias a gente se depara com situações em que não há um olhar prioritário para o atendimento delas nas mais diversas áreas. São preteridas em razão de outros interesses. Esse princípio que deveria ser preservado para garantir a integridade das crianças, muitas vezes não se faz presente, está no papel, mas, na prática, não existe”, critica a promotora.
Conforme Daniele, é preciso que a sociedade esteja alerta. Em casos que o abuso ocorre dentro de casa, a criança normalmente se vê diante de um cenário de medo e angústia, pois quem deveria amparar, na verdade, é seu algoz. Familiares e até mesmo professores e pessoas que possuem contato com a criança devem estar atentos aos comportamentos “silenciosos”, como mudanças repentinas em atitudes e na personalidade.
Além disso, é destacado que profissionais da educação e da saúde devem receber capacitação para coletar, sem julgamentos, os relatos de crianças que não têm o devido acolhimento em casa, buscando não revitimiza-las.
“A vítima fez um relato. Vamos sempre presumir que é digno de ser verificado, a troco de que ela faria este relato? Não se pode simplesmente achar que não aconteceu, que não foi bem assim e invalidar. Temos que partir do pressuposto que a criança, ao falar, está pedindo socorro, temos que ouvir para checar a veracidade. Porque senão a vítima fica refém da situação”, orienta.
Como proceder com uma denúncia
Informações do Poder Judiciário de Mato Grosso revelam que o número de processos por estupro de vulnerável aumentou 21% entre os anos de 2023 e 2024. Em 2023, foram 1.714 processos registrados; em 2024, o número subiu para 2.082. Somente nos quatro primeiros meses de 2025, já foram distribuídos 627 novos casos.
Para atenuar essa triste realidade, Daniele explica que é preciso trabalhar desde a base da conscientização e explicar das crianças pequenas até as mais velhas a importância de denunciar, como fazê-lo e pedir ajuda. “A gente faz esse trabalho nas escolas, falar com as crianças, adolescentes, sobre a importância de se preservar, cuidar do corpo, saber pedir ajuda e como reconhecer que está acontecendo abuso, porque muitas vezes, isso acontece no âmbito intrafamiliar”, destaca.
Desse modo, o Ministério Público atua tanto na parte preventiva, de conscientização, orientação, na busca de informar para evitar, mas caso os crimes aconteçam, atua na forma repressiva, buscando a punição dos infratores para aplicação de pena e prisão na esfera criminal.
O órgão também faz o recebimento de denúncias de crimes. Ela ressalta que além das delegacias especializadas, as pessoas podem se dirigir até as promotorias de justiça para ou por meio dos canais de comunicação como o disque 100 ou o 127, que é a ouvidoria do Ministério Público. “Temos também comunicações que as crianças fazem como as revelações espontâneas na escola, em postos de saúde, e por meio também dos inquéritos que são trazidos pela delegacia de polícia, a forma que nos chega é bem ampla. Isso tudo é acompanhado”, destaca.
Após o recebimento das denúncias, devem ser tomadas medidas tanto no âmbito cível, para proteção da criança e adolescente, quanto no âmbito criminal. Também são ajuizadas medidas de proteção, acompanhamento psicológico e pedidos de ações de destituição do poder familiar, para proteger e preservar a integridade física e psicológica da criança.
Evento
Com o objetivo de fortalecer a atuação integrada na garantia dos direitos de crianças e adolescentes, o Ministério Público de Mato Grosso (MPMT) e o Poder Judiciário de Mato Grosso realizam nos dias 29 e 30 de maio o 4º Encontro Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, no Plenário 1 do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), em Cuiabá.
O evento deve reunir magistrados, promotores, integrantes da rede de proteção da criança e adolescente, e interessados no tema, em um momento de compartilhar informações, discutir temas relevantes, criar cartas de compromisso e fluxos de atuação. A programação conta com palestras, debates e apresentações voltadas a promotores de Justiça, magistrados e profissionais que atuam na área no estado. As inscrições estão abertas para participação presencial ou on-line (clique aqui).
Essa é uma das ações que reforçam o comprometimento com o 18 de maio, que é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil. O mês de maio é nacionalmente conhecido como Maio Laranja, um movimento de conscientização que visa dar visibilidade a este grave problema.