Havia uma linguagem própria no seminário em que Brendo Silva estudou para ser padre. As "panelinhas gays", ele diz, pareavam expressões do meio religioso com termos sexuais. "Rebanho", por exemplo, significava pênis. "Fazer pastoral" equivalia a transar.
"Um novo formato de pajubá", afirma em referência ao dialeto próprio da comunidade LGBTQIA+, que nasce "quando o sagrado e o profano já não são dois, mas uma só carne".
Enquanto frequentou "gayminários", apelido que os internos davam para a rotina seminarista, Silva diz ter experimentado uma "pulsante vida gay no seio da Santa Madre Igreja".
Conta que foi pela primeira vez a uma boate gay com um padre. "Me largou sozinho na pista de tribal house [estilo de música eletrônica] e foi se deliciar no dark room", afirma ele sobre a ocasião.
Daquela noite, ele diz se lembrar "com um sorriso no rosto" de se sentir deslocado, "vestido com calça e sapato sociais, cruz no peito e encostado na parede, a esperar pelo clérigo".
Tudo isso este pedagogo de 33 anos relata em "A Vida Secreta dos Padres Gays - Sexualidade e Poder no Coração da Igreja" (ed. Matrix, 216 págs.). O autor parte da própria experiência para, segundo ele, "tirar a igreja do armário" e expô-la como "a grande rainha da hipocrisia".
"É um sistema de mentira, de opressão, de fingimento, que tranca as pessoas ali no armário e que faz com que essas mesmas pessoas odeiem seus iguais", Silva afirma à Folha. "A minha postura é de revolta no sentido de querer que a igreja mude, por ser uma instituição poderosa e influente, que molda a cultura, a política."
Recém-lançado pela editora Matrix, o livro tem rendido ameaças, ele diz, e envia prints para ilustrar. "Na inquisição você estaria na fogueira" e "só basta enfiar uma peixeira no seu bucho para ver se vira homem" são algumas delas. Ele deixou a igreja dez anos atrás.
Silva mostra ainda tentativas de falar com instituições mencionadas no livro. Ele procurou a Arquidiocese de São Paulo para denunciar horrores que diz ter vivido num seminário no interior paulista.
Procurada pelo jornal, a arquidiocese afirma que ele entrou em contato por email em outubro de 2023. A Comissão Arquidiocesana de Tutela, instituída em 2020 para investigar denúncias de abusos sexuais, "respondeu prontamente, apresentando os procedimentos necessários para o acolhimento da solicitação", diz a nota enviada à reportagem.
O regulamento interno prevê encontros "de modo presencial, mediante agendamento prévio", o que, segundo a arquidiocese, não foi bem aceito pelo autor. O ex-seminarista "expressou desconforto com os trâmites estabelecidos e não deu continuidade aos procedimentos", afirma.
Não fez novos contatos, tampouco formalizou denúncia na comissão. Silva conta outra versão. Afirma que não quis prosseguir "porque eles queriam os nomes e locais em que as coisas aconteciam por email". A mensagem em questão pedia que ele apresentasse essas informações e eventuais "provas documentais ou testemunhais".
Diz que preferia especificar o caso numa reunião presencial e teve como resposta que os dados eram necessários para marcar a conversa. Desistiu.
A obra é recheada com exemplos do que o autor aponta como "incoerências do clero católico". Como seu relacionamento com um padre goiano que conheceu pelo Facebook, conta. "Com a desculpa de que iria me ajudar na vocação, fui morar com ele na casa paroquial. Logo percebi que o clérigo buscava, na verdade, um namorado bem mais jovem. Quando me negava a satisfazer suas vontades, ele ‘surtava’ e me tratava mal por dias."
No capítulo "Padre Abusador", Silva relata que, durante a confissão, um dos sete sacramentos do catolicismo, admitiu ter se masturbado —algo visto como pecado. O padre responsável, segundo ele, "começou a pedir detalhes sobre como eu havia me masturbado", inclusive "minúcias de minhas fantasias sexuais, alegando ser necessário à completude do sacramento".
O clérigo, que não é identificado nominalmente, teria então levantado e revelado uma ereção sob a calça.
"Essa experiência de assédio sexual marcou minha vivência religiosa de forma fulcral", diz. "Cheguei a comentar o ocorrido com outros padres e superiores, que me ignoraram."
Jeferson Batista, doutorando na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que pesquisa o ativismo de grupos católicos LGBTQIA+, diz não se surpreender com depoimentos como o de Silva.
"De modo geral, há um silêncio sobre a homossexualidade dentro do clero. Entrevistando padres gays ou não desde 2017, percebi que, ainda que seja bastante comum encontrar sacerdotes gays, a homofobia entre eles é muito presente."
Quem fala sobre o tema tabu mais abertamente "muitas vezes é visto como uma ameaça" para a igreja, diz. "Como o celibato é uma exigência, acaba sendo um escudo. Afinal, para que assumir uma identidade sexual se não há prática sexual, em tese? Isso é um problema, porque se cria a imagem de que o clero é totalmente heterossexual."
A Santa Sé tem documentos que dificultam a vida de padres e leigos LGBTQIA+. O principal deles é o Catecismo da Igreja Católica, que define atos homossexuais como "intrinsecamente desordenados" e "contrários à lei natural", lembra o pesquisador.
Outro documento da Cúria Romana, de 2005, barra a admissão em seminários de homens que apresentam "tendências homossexuais profundamente radicadas" ou apoiam a chamada "cultura gay". O documento também manifesta preocupação com as "práticas homossexuais".
"Veja que há uma preocupação exacerbada com os gays, que têm suas identidades sexuais reduzidas a sexo, muitas vezes", diz Batista. "E os padres heterossexuais que mantêm relacionamentos sexual-afetivos e até filhos têm?"
Para Silva, o novo papa pode complicar ainda mais a vida de quem já se vê perseguido na igreja. Quando Leão 14 diz que a família tem por base um homem e uma mulher, "vários padres conservadores passam a distorcer e ampliar essa fala com textos terríveis nas redes".
Jeferson Batista tem uma visão mais otimista. "O pontificado de Francisco impulsionou iniciativas pela cidadania religiosa de pessoas LGBTI+ ao redor do mundo, e isso chegou ao clero. Cada vez mais padres estão declarando apoio a leigos LGBT+ e se assumindo publicamente ou em círculos de amigos. A saída do armário dos padres é um movimento tímido, mas que ajuda a normalizar a ideia de que a homossexualidade não define o trabalho de um sacerdote. É apenas mais um aspecto de sua vida."