Com menos de 500 leitos de UTI para cerca de 11 milhões de habitantes, o sistema de saúde da Bolívia já apresentava seus limites antes da Covid-19. Mas a pandemia agravou a situação, exacerbando a falta de remédios, de especialistas e de vagas nos hospitais públicos.
Desesperadas, algumas famílias acabam optando pelo sistema privado, com o risco de se endividarem durante anos ou até de não poderem retirar o corpo de seus entes em caso de óbito.
Com um salário médio equivalente a R$ 2 mil, a Bolívia é um dos países mais pobres da América do Sul. No entanto, na hora da doença muitos não hesitam em levar seus familiares para o sistema de saúde privado, mesmo sabendo que, por algumas semanas de hospitalização, a conta pode ultrapassar R$ 400 mil.
“Não tínhamos escolha. Hospitalizei meu irmão onde havia vaga”, conta Irma. “Ligamos para amigos, conhecidos, para ver se alguém podia ajudar. Quando conseguimos um leito disponível, não pensamos duas vezes”, se lembra.
Apesar de ter um salário modesto, ela decidiu internar seu irmão em uma clínica privada, mesmo sabendo que a diária ultrapassava o equivalente a R$ 5 mil. A solução foi vender um carro para pagar a fatura.
Mas nem todos tem bens disponíveis como Irma. Foi o caso de Wilma, que perdeu o pai após 36 dias de hospitalização e uma conta de cerca de R$ 400 mil para pagar. “A clínica me ligou para avisar que ele tinha falecido no sábado, às 21h. Quando cheguei lá, ninguém queria me atender. A única coisa que queriam era que pagássemos US$ 75 mil”, relata Wilma que, com os cinco irmãos, só conseguiu reunir 20% da soma. Resultado: o hospital não liberou o corpo durante quatro dias. “Tivemos que esperar até quarta-feira”, se recorda, ainda traumatizada.
A “retenção de cadáveres” não é uma novidade na Bolívia para as famílias que não podem pagar a conta das clínicas ou hospitais privados. “Há alguns anos isso acontecia com frequência. Mas agora é mais raro, pois essa prática é proibida e há sanções”, explica Nadia Cruz, da Defensoria Pública. "No entanto, com a Covid-19 e os valores elevados que representam as [longas] hospitalizações, algumas clínicas voltaram a fazer isso”, relata.
Para tentar evitar os abusos, uma lei, votada em fevereiro deste ano, limita os honorários das clínicas privadas a cerca de R$ 2.600 por dia na UTI. Mas nem todos respeitam a regra. "Com a nova lei, conseguimos verificar se as tarifas ultrapassam o limite imposto pelo governo. Mas não temos como verificar quais medicamentos foram usados na terapia intensiva”, conta Nadia Cruz.
O que explicaria as faturas exorbitantes apresentadas na hora da alta ou, pior, no momento de liberar o corpo de um familiar em caso de óbito. “Quando temos acesso aos dossiês completos, recebemos 10 páginas de tratamentos que não temos como avaliar se eram realmente necessários”, afirma Nadia.
Os estabelecimentos privados, que representam mais da metade dos leitos de UTI na Bolívia, alegam que as tarifas impostas pelo governo não correspondem à realidade do mercado. “Um especialista não vai querer trabalhar por 20, 30 ou 50 bolivianos por dia (entre R$ 15 e R$ 40)”, explica o doutor Suxo, da Clínica del Sur, em La Paz.
Para evitar os calotes ou o “sequestro de cadáveres”, algumas clínicas pedem aos familiares o pagamento de um sinal antes da hospitalização, mesmo em caso de urgência. Ou então que uma garantia seja apresentada como, por exemplo, a escritura de uma casa própria.