A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo disse nesta sexta-feira (28), por meio de nota, que o projeto de lei que prevê multa de R$ 17 mil a quem descumprir determinados requisitos sobre doação de alimentos a pessoas em situação de rua na capital é inconstitucional.
O texto foi aprovado em primeira votação pela Câmara dos Vereadores de São Paulo nesta quinta (27) e recebeu inúmeras críticas de ONGs e entidades.
"Se todos são iguais perante à lei e aos poderes públicos constituídos, não pode o Município se sobrepor às relações humanas e às relações interpessoais. Desta forma, a Câmara não pode, em hipótese alguma, proibir que pessoas doem a outras pessoas, seja alimentos, bens ou afetos."
No texto, a Comissão Permanente de Direitos Humanos da OAB-SP aponta que a proposta, configura "em uma ação de abuso de poder por parte da Câmara ao requerer que doadores e pessoas atendidas tenham que solicitar autorização para tal ato."
Entidades criticam
Ao g1, os representantes de ONGs que atuam com pessoas em situação de rua apontaram que exigir listas, documentos e autorizações são "arbitrariedades sem sentido ou base que, com certeza, afastarão voluntários e inibirão o trabalho humanitário realizado hoje pelas ONGs na cidade".
"A proposta encabeçada pelo vereador Rubinho Nunes [União] novamente mostra um profundo desconhecimento dele em relação à realidade da população vulnerável na cidade. Centenas de entidades fazem o trabalho que a prefeitura deveria fazer, mantendo essas pessoas vivas, alimentadas e protegidas do frio. São grupos de voluntários. Muitas dessas ONGs são formalizadas, mas muitas não são, justamente por se tratar de projetos formados por cidadãos que resolveram fazer o que o Estado falha em fazer", destacaram Thiago Branco, fundador da ONG Mãos na Massa, e Christian Francis Braga, fundador do Instituto GAS.
Pai Denisson D’Angiles, fundador do Instituto CEU Estrela Guia, disse estar estarrecido com o projeto de lei."Quando alguém com o poder de legislar sobrepõe as suas vontades próprias em vez de coibir a fome, nos preocupa muito. A fome está latente no coração da cidade. Uma pessoa com um pouquinho de discernimento, com um pouquinho de razão, jamais cercearia este bem-estar, cercearia a vida de uma pessoa".
A Ação da Cidadania, uma das maiores ONGs de combate à fome no país, também criticou o projeto: "É triste observar que representantes políticos da maior metrópole do país estabeleça critérios para que a sociedade civil cumpra com um trabalho que deveria ser uma atribuição do poder público, sob consequência de pagamento de multa de até R$ 17 mil, além de tantas outras barreiras burocráticas com o claro objetivo de desencorajar a atuação de organizações não-governamentais e entidades que distribuem refeições diárias para quem não tem o que comer", destacou a entidade.
Em nota, Rubinho Nunes (União), autor do projeto, afirmou que "o objetivo do projeto é garantir protocolos de segurança alimentar na distribuição, prestigiando a higiene e acolhimento das pessoas vulneráveis durante a alimentação". Disse também que "alguns veículos deram uma interpretação errada e desvirtuada sobre o projeto".
"O projeto também otimiza a assistência, pois evita desperdício e a venda de marmitas para compra de drogas devido a distribuição concentrada, o que prejudica a ajuda a pessoas em regiões mais afastadas da cidade", completou.
'Punição aos pobres'
Ao g1, o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, disse que o PL é mais um projeto "aporofóbico, de punição dos pobres e daqueles que estão ao seu serviço'. "Segurança alimentar em momento de fome, de crise, e de tanta gente sem condições, se chama a prato de comida".
Na avaliação do padre, entretanto, o projeto não deve avançar. A proposta foi rapidamente condenada por diversos movimentos que atuam na assistência da população de rua. "São muitos grupos, muitos. Evangélicos, espíritas – que são imbatíveis -, católicos, e muitos sem nenhuma filiação religiosa, se manifestando contra. Esperamos que não avance, a reação está sendo muito grande".
O que prevê o projeto?
Para doar alimentos, as pessoas físicas deverão:
Limpar toda a área onde será realizada a distribuição dos alimentos e disponibilizar tendas, mesas, cadeiras, talheres, guardanapos e "demais ferramentas necessárias à alimentação segura e digna, responsabilizando-se posteriormente pela adequada limpeza e asseio do local onde se realizou a ação";
Autorização da Secretaria Municipal de Subprefeituras;
Autorização da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS);
Cadastro de todos os voluntários presentes na ação junto à SMADS.
Além dos requisitos descritos acima, as entidades e ONGs deverão:
Razão social da entidade registrada e reconhecida por órgãos competentes do município;
Apresentação de documento atualizado com informações sobre o quadro administrativo da entidade, com nomes e cargos dos membros e as devidas comprovações de identidade;
Cadastro das pessoas em situação de vulnerabilidade social e informações atualizadas SMADS
Os voluntários deverão estar identificados com crachá da entidade no momento da entrega do alimento;
As documentações apresentadas pelas ONGs e entidades deverão ser autenticadas em cartório ou estar acompanhadas de atestado de veracidade.
O texto também estabelece que o local em que os alimentos serão preparados deverão passar por vistoria da Vigilância Sanitária.
A Prefeitura de São Paulo informou que, atualmente, não existe obrigação de TPU (Termo de Permissão de Uso) para entrega de alimentação às pessoas em situação de rua. Disse também que o projeto será analisado pelo prefeito, caso seja aprovado em segunda votação.
Oposição quer barrar
A vereadora Luna Zarattini (PT) disse ao g1 que irá "buscar meios deste retrocesso não acontecer na nossa cidade".
"Em vez do Projeto incentivar as ONGs no combate à fome e à miséria na nossa cidade, estimula multas e penalidades através de muitos requisitos meramente burocráticos. O vereador em questão tem histórico de perseguir aqueles e aquelas que tem se indignado com o crescimento da população em situação de rua que chega a 52 mil pessoas. É um absurdo que neste cenário de abandono a grande preocupação seja com as ONGs e não com a fome", pontuou a parlamentar.
A covereadora Silvia Ferraro, do mandato coletivo Bancada Feminista do PSOL, disse que pretende obstruir a pauta da Câmara Municipal, caso o projeto siga para segunda votação.
"Este projeto tem o objetivo de impedir a distribuição de alimentos para a população em situação de rua na cidade de São Paulo. Coloca vários obstáculos irreais e várias burocracias para, na prática, acabar com a distribuição de comida para uma população extremamente vulnerável e famélica".
“O vereador autor do projeto quer matar de fome a população em situação de rua, burocratizando e impedindo na prática, a distribuição de alimentos para uma população extremamente vulnerável!”, completou.