Dizer que uma imagem vale mais que mil palavras só reforça o dito chinês que a séculos vem sendo repetido. É claro que algumas imagens são mais impactantes que outras e, em assim sendo, se fixam por mais tempo em nossa memória.
E, quase sempre, nos levam a uma reflexão mais aprofundada sobre o fato mostrado. Mato Grosso acaba de contribuir para isso.
Numa imagem que correu o Brasil, vemos filas de pessoas, aglomeradas em plena pandemia, sôfregas, com olhar em que a angustia é partilhada com mal disfarçada alegria.
Pessoas simples, a maioria de chinelos de borracha e de vestimentas modestas, fazem fila para conseguir um pedaço de osso. Alguém distraído e menos atento à realidade poderia supor que os ossos iriam para os cães, tradicionais consumidores dessas peças. Mas, não. Sim, o osso doado pela caridade da proprietária de um açougue, era o alimento tão esperado por desnutridas crianças. Os fiapos de carne grudados aos ossos era prêmio dos mais aguardados.
Tal situação de pessoas famintas, desesperançadas, vivendo abaixo da linha da pobreza, com um nível mínimo de proteínas e ferro, nutrientes estes fundamentais na infância e na gravidez, constituem um escândalo. São infra homens que estão sendo gerados para o futuro. Sim, penso sobretudo nas crianças. “Futuro do Brasil”? Então puxo pela memória um dos poemas mais soturnos que já li. O grande, e tão pouco lido, Manuel Bandeira escrevia há algumas décadas:
Vi ontem um bicho.
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa
Não examinava, nem cheirava
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Afinal as filas imensas, famintas e ansiosas, fotografadas e televisionadas eram a de um país devastado por uma guerra ou vítima de uma catástrofe provocada pela força da natureza? Não, meu caro leitor.
O cenário cuiabano, que se mostrou ao Brasil, ao contrário, acontece em uma das regiões mais prósperas do país e, até o momento, imune a terremotos e a tornados. Pelo menos, não desses provocados pelos elementos naturais. Então, senhoras, vamos à afirmação dessa riqueza. Está em sites do governo e outros oficiais: o último dado disponível pelo IBGE (2018), através da Pesquisa da Pecuária Municipal – PPM, registra que MT possuía perto de 30 milhões de bovinos, o que representava nada menos que 13,8% do total nacional e, só para mostrar o crescimento, no ano seguinte esse número chegava a 32 milhões de cabeças. Não é pouco.
Conforme dados divulgados pelo INDEA e pelo Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária – IMEA o ritmo anual dessa expansão vem sendo em média de 2,13%. Já algum tempo MT é dono do maior rebanho brasileiro. Mas, para não ficarmos apenas na proteína animal, vejamos o caso das commodities agrícolas, na qual se destaca a produção de soja, para citar um único exemplo. Segundo o mesmo IMEA [março/21] a safra prevista para 2020/2021 alcançará perto de 36 milhões de toneladas, representando um crescimento recorde de 0,94%. Neste item, mais uma vez MT está em primeiro no pódio.
Em resumo, o PIB, ou seja a soma de todas as riquezas produzidas no Estado, registra um crescimento fenomenal de 41%, [entre os anos de 2010 e 2022], liderando a economia nacional, para a qual contribui de modo significativo. Então, não há porque não afirmar que estamos num Estado realmente rico e no qual, por conseguinte, vivem algumas das pessoas mais ricas do Brasil.
Eis aqui a questão: então, porque tanta gente passando fome? Por que favelas já estão aparecendo em cidades do interior, sem falar nas já existentes na capital? Por que a violência pública grassa como praga? Então por que, no Estado dono do maior rebanho bovino do Brasil e um dos maiores do mundo, a fila do osso? Por que milhares de mães justificadamente dão graças a Deus por receberem um pedaço de osso para tentar apaziguar a fome de seus pequenos?
O que está faltando na mesa posta em um Estado tão rico?
Vivi parte de minha juventude nos tumultuados e por vezes sombrios anos sessenta e setenta. Entre as leituras que nos marcaram, a mim e a muitos jovens, estavam dois textos ainda hoje vivos. Um deles, o da grande brasileiro Josué de Castro (1908 - 1974). Em 1964, cassado, perseguido, proibido de lecionar, exilado, foi dar aula em respeitadas Universidades europeias, Sorbonne, Genebra. Anos antes havia publicado uma obra revolucionária e que marcaria gerações: “Geografia da Fome”. Nela o médico e sociólogo desmascarava o mito de que o fenômeno da fome era devido a influencias climáticas ou que era culpa da improdutividade da população que, em grande parte, optava pelo ócio.
Argumento que, de certo modo, persiste ainda. “Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado” - escreveu emblematicamente.
O outro texto marcante foi o do Papa João XXIII (1881 - 1963). A Encíclica Pacem in Terris [Paz na Terra], divulgada dois meses antes de sua morte, propugnava por uma nova e dinâmica linha para a Doutrina Social [o aggiornamento] compatível com os tempos modernos da Igreja, mas que era também dirigida para todos os “homens de boa vontade”. Um pensamento doutrinário que estabelecia como base estruturante a Verdade como fundamento, a Justiça como norma, a Caridade como motor e a Liberdade como clima.
Textos estes, meio século depois, atualíssimos. E para mim, mais atuais ainda quando, diante da fila do osso, toma-se conhecimento de mais uma contribuição de Mato Grosso. Uma inusitada notícia, divulgada até em jornais do exterior, causou estupefação a alguns. Não era uma notícia qualquer. Num momento de tantas dificuldades econômicas para a imensa maioria da população, num momento em que os brasileiros se debatem numa crise social e psicológica de inesperadas proporções resultante de uma pandemia que diariamente ceifa vidas valiosas e destroem famílias, uma pequena nota, que logo seria reproduzida pelos sites, jornais impressos e pela televisão, teria o impacto de abalar os mais ingênuos.
É que, no dia 19 de fevereiro, o Sport Club Internacional, de Porto Alegre, popularmente chamado de “Colorado”, postava em seu site “que recebeu nesta sexta-feira, a doação de R$ 1 milhão de Elusmar Maggi Scheffer. O torcedor colorado, morador de Cuiabá-MT, assinou o termo que repassa o valor ao Clube sem qualquer tipo de contrapartida.”.
E, efusivamente, complementava: “Registramos o nosso mais sincero agradecimento diante de atitude tão genuína, que demonstra o quanto o torcedor colorado é apaixonado e não mede esforços para contribuir com o clube do seu coração!” Essa bagatela era destinada a que o time gaúcho pagasse multa que permitisse a um jogador entrar em campo para enfrentar o carioca Flamengo. Um milhão de reais por noventa minutos, quer dizer, o cabalístico número de R$ 11.111,11 por minuto de jogo, que, como se sabe, acabou sendo muito mais já que o referido jogador não atuou todo o tempo regulamentar. “Generosidade”, sem dúvida, digna de entrar para o Guinness Book.
Para mim, não obstante, foi sobretudo oportunidade para algumas reflexões. E, de quebra, trouxe-me à memória o período áureo do ciclo da borracha na Amazônia, entre os anos de 1879 e 1912, época em que corria tanto dinheiro que Manaus era conhecida como a “Paris dos Trópicos” e em que os magnatas, nos bordeis que frequentavam, acendiam charutos importados com notas de mil reis e os mais ricos até com notas de libras esterlinas. O esbanjamento, porém, não duraria para sempre. Os ventos da economia mundial soprariam em outras direções e a época do fausto e do luxo desmoronaria.
E agora, para encerrar, trago novamente o grande Josué de Castro que gravou uma frase que tem o poder profético e que, diante de todos esses fatos deve, no mínimo, nos provocar, espero, uma reflexão: “Existem dois terços de pessoas que não dormem porque sentem fome, e um terço de pessoas que não dormem por medo dos que sentem fome.”
Sebastião Carlos Gomes de Carvalho é professor e historiador