Opinião Sexta-Feira, 30 de Maio de 2025, 14h:33 | Atualizado:

Sexta-Feira, 30 de Maio de 2025, 14h:33 | Atualizado:

Orlando de Almeida Perri

A requisição de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s)

 

Orlando de Almeida Perri

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Dias atrás, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou dissenso jurisprudencial existente entre a 5ª e a 6ª Turmas, atinente à possibilidade de os órgãos da persecução penal requisitarem, ex officio e sem prévia autorização judicial, os denominados Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s) ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF)1. 

Tal divergência tem origem na própria Suprema Corte, que, não obstante o entendimento fixado no Tema 990, com repercussão geral reconhecida, ainda revela certa oscilação interpretativa, ora legitimando, ora infirmando a validade dos RIF’s obtidos sem prévio crivo jurisdicional. 

Por versar sobre direitos fundamentais, compete ao Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, firmar o entendimento definitivo acerca da matéria, que tem causado instabilidade na jurisprudência pátria, sobretudo diante da prática reiterada de o Ministério Público e a autoridade policial, no âmbito de investigações criminais, requisitarem diretamente ao COAF a emissão de Relatórios de Inteligência Financeira de pessoas sob suspeita de lavagem de capitais, à margem de qualquer controle judicial. 

É sobre essa tormentosa questão que me permito externar posicionamento, o qual tenho sustentado, invariavelmente vencido, nas sessões de julgamento no âmbito do Tribunal em que ofício. 

Nos termos do ordenamento constitucional vigente, à luz da cláusula de reserva de jurisdição que tutela o direito à intimidade (art. 5º, X, da Constituição da República) e à proteção dos dados pessoais (art. 5º, LXXIX, da Constituição da República), mostra-se absolutamente vedado o acesso, sem autorização judicial ou previsão legal expressa, a dados sensíveis ou informações protegidas por sigilo, admitindo-se, tão somente, o fornecimento de dados cadastrais básicos, como nome, filiação, endereço e outros de natureza meramente identificadora, corriqueiros nas relações civis e comerciais. 

No tocante aos sigilos bancário e fiscal, é pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que não se permite ao Ministério Público, e muito menos à autoridade policial, acessar informações acobertadas por sigilo, detidas pela Receita Federal ou por instituições financeiras, sem prévia decisão judicial. 

Cumpre asseverar que o artigo 17-B da Lei nº 9.613/1998 guarda equivalência material com os artigos 3º e 15 da Lei nº 12.850/2013, os quais, de forma inequívoca, não autorizam o acesso do Ministério Público ou da autoridade policial a dados protegidos por sigilo bancário ou fiscal sem a devida intervenção do Poder Judiciário. Permitem-se, repita-se, apenas informações de caráter cadastral, tais como nome, CPF/CNPJ e domicílio. 

Ressalte-se, ainda, que tanto o sigilo fiscal quanto o bancário impõem às pessoas jurídicas responsáveis pela manutenção dessas informações o dever legal de comunicar às autoridades competentes a existência de indícios fundados da prática de crimes detectados no âmbito de procedimentos regularmente instaurados. 

Foi precisamente esse o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 990, em sede de repercussão geral, cuja tese restou assim fixada: 

Tese: 1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios”. 

Da própria ementa exsurge, de forma inequívoca, a natureza sigilosa dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s), haja vista conterem informações intrinsecamente vinculadas à esfera da privacidade financeira dos indivíduos. 

Cumpre destacar que os RIF’s são elaborados a partir dos comunicados remetidos ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) por pessoas físicas e jurídicas sujeitas às obrigações previstas no artigo 9º da Lei nº 9.613/1998. Tais comunicações referem-se a dados sensíveis, relativos ao recebimento e à movimentação de valores que, por apresentarem características atípicas ou suspeitas, demandam maior escrutínio. 

Em razão da própria natureza dos RIF’s — instrumentos de inteligência financeira —, impõe-se que sua elaboração observe rigorosamente os limites da atividade informacional, abstendo-se de pormenorizar as operações financeiras reputadas suspeitas, cujos detalhes, por envolverem informações protegidas por sigilo bancário, somente podem ser acessados mediante ordem judicial específica, em estrita observância ao princípio da reserva de jurisdição. 

Com a precisão cirúrgica que lhe é peculiar, especialmente visível no emblemático julgamento relativo à controvertida requisição de RIF’s pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no âmbito das investigações envolvendo o Senador da República, Flávio Nantes Bolsonaro, o eminente Ministro Gilmar Mendes consignou, com rara propriedade:  

“Desse modo, assenta-se de forma clara que os RIF’s, por sua própria natureza, não constituem elementos indiciários ou probatórios autônomos capazes de, por si só, desencadear a instauração de procedimento investigativo ou ação penal. 

Portanto, a função primordial dos RIF’s, sua verdadeira vocação instrumental, é possibilitar a realização de outras medidas investigativas que poderão ser utilizadas como elementos de prova, em especial a quebra de sigilo bancário e fiscal submetida à reserva de jurisdição” [HC nº 201.965/RJ]. 

Lamentavelmente, não é esse o cenário que se observa na práxis forense, a ponto de o próprio Supremo Tribunal Federal já haver reconhecido, no julgamento do HC nº 126.826/PA, a existência de justa causa para deflagração da ação penal fundada exclusivamente em informações provenientes do COAF. 

O grau de detalhamento que, de forma recorrente, se verifica nesses Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s) tem provocado verdadeira subversão de sua natureza jurídica, transmudando-os de simples instrumentos de inteligência em autênticos meios de prova — e, não raras vezes, em elementos probatórios — utilizados para embasar medidas constritivas gravíssimas, tais como buscas e apreensões, interceptações telefônicas, prisões cautelares e, até mesmo, condenações criminais, como fartamente demonstra o volumoso acervo jurisprudencial nacional. 

Diante desse cenário, impõe-se, com redobrada urgência, que o Supremo Tribunal Federal se debruce, de maneira definitiva, sobre a possibilidade de o Ministério Público e a autoridade policial solicitarem — termo que, não por acaso, tem servido como eufemismo para "requisitarem" — o envio de RIF’s pelo COAF, definindo, de forma inequívoca, os seus contornos constitucionais e legais. 

Cumpre assinalar que, no julgamento do Tema 990, a Suprema Corte apenas tangenciou essa relevante discussão, sem que a possibilidade de requisição direta de informações financeiras pelo Ministério Público ou pela autoridade policial houvesse integrado, de fato, o objeto da controvérsia ou a tese fixada. 

Revela-se, pois, absolutamente necessária e inadiável a manifestação do Pretório Excelso, de modo a pacificar a celeuma atualmente instaurada, estabelecendo, sendo  o caso, parâmetros claros, objetivos e vinculantes acerca das condições, dos requisitos e dos limites para a elaboração dos denominados RIF’s por intercâmbio, sobretudo no que concerne ao seu conteúdo — precisamente no que podem e no que não podem conter. 

Essa definição normativa e jurisprudencial encontrará terreno propício no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.624, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), oportunidade em que essas e outras relevantes questões jurídicas terão seu devido enfrentamento. 

Em rigor, não é o rótulo formal do documento, mas sim o seu conteúdo, que lhe confere a natureza de dado sigiloso ou não. Na ausência de parâmetros objetivos que balizem a extensão e os limites das informações constantes nos RIF’s, a possibilidade de requisição direta por órgãos de persecução penal configurar-se-á, na prática, verdadeira carta branca para o acesso irrestrito a dados financeiros e bancários, à margem do controle judicial, em flagrante afronta ao direito fundamental à privacidade e à proteção de dados pessoais. 

A matéria demanda, ainda, reflexão acurada acerca da possibilidade — e dos limites — de exercício do controle jurisdicional a posteriori, especialmente quanto à aferição da proporcionalidade e da razoabilidade dos dados constantes nos RIF’s, de forma que tal controle não se concentre, exclusivamente, nas mãos do Ministério Público ou da autoridade policial, sob pena de esvaziamento da cláusula de reserva de jurisdição. 

Todas essas questões pressupõem, necessariamente, a prévia e detida reanálise da própria legitimidade jurídica da produção dos chamados "RIF’s por intercâmbio", modalidade esta que não encontra respaldo normativo no ordenamento jurídico pátrio. 

Efetivamente, um exame rigoroso das legislações que regem a persecução penal e a prevenção à lavagem de capitais no Brasil revela a inexistência de qualquer dispositivo legal que autorize a elaboração dos denominados "RIF’s por intercâmbio", os quais parecem encontrar fundamento exclusivo nas Recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) — organismo intergovernamental —, que, no item 29, admite a “disseminação mediante pedido de informações de autoridades competentes, assim como do Grupo de Egmont, organismo intergovernamental constituído no Palácio Egmont Arenberg, em Bruxelas, cujas diretrizes, expressamente delineadas nos seus Princípios 14 e 24, igualmente orientam a realização desse intercâmbio de informações financeiras entre unidades de inteligência financeira de diferentes países. 

Referidas Recomendações e Princípios não ostentam, evidentemente, a força normativa própria dos Tratados e Convenções Internacionais de que o Brasil seja signatário, especialmente aqueles concernentes aos direitos humanos, que, por força do artigo 5º, § 3º, da Constituição da República, ingressam no ordenamento jurídico pátrio com status equivalente ao de Emenda Constitucional. 

Aliás, cumpre destacar que tais atos infranacionais, de caráter meramente orientativo, sequer possuem hierarquia sobre a legislação ordinária, como é o caso da Lei Complementar nº 105/2001, que dispõe acerca do sigilo das operações de instituições financeiras, estabelecendo, de maneira expressa, a cláusula de reserva de jurisdição para o acesso a dados bancários. 

Nesse contexto, conquanto o Brasil integre tais organismos internacionais — a exemplo do GAFI e do Grupo de Egmont — e, por dever de cooperação, busque alinhar-se às suas orientações, é certo que tais diretrizes não podem, sob qualquer pretexto, contrariar o arcabouço normativo interno que tutela, com densidade constitucional, os sigilos bancário e fiscal, bem como a proteção dos dados sensíveis, ora expressamente reconhecida no texto constitucional, no artigo 5º, inciso LXXIX, com a redação conferida pela Emenda Constitucional nº 115/2022. 

A possibilidade que o art. 14, § 2º, da Lei n. 9613/98 dá ao COAF de “coordenar e propor mecanismo de cooperação de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores”, assim como de promover interlocução institucional com órgãos e entidades nacionais, estrangeiras e internacionais que tenham conexão com suas atividades [art. 3º, II, da mesma Lei], não implica que possam as autoridades incumbidas da persecução penal solicitar do COAF informações sobre movimentações financeiras atípicas e suspeitas. 

O que se permite, de fato, é que os órgãos de persecução penal abasteçam o COAF com informações que possam incrementar o nível de risco dos dossiês — encaminhados pelas instituições financeiras e demais entidades obrigadas, nos termos do artigo 9º da Lei nº 9.613/1998 —, justificando, assim, a eventual elaboração dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s). 

Entretanto, não se confere ao COAF qualquer licença legal que o autorize, a partir de requisições formuladas pelo Ministério Público ou pela autoridade policial, a buscar informações além daquelas já encaminhadas pelas entidades que integram o sistema financeiro. Qualquer atuação nesse sentido configuraria prática incompatível com o ordenamento jurídico, caracterizando intolerável fishing expedition, vedada pelo Estado de Direito. 

É princípio elementar do Direito Público que a legalidade administrativa vincula os agentes estatais a fazer somente aquilo que a lei expressamente autoriza. Inexistindo autorização normativa específica para o acesso a dados sigilosos ou sensíveis, o ato administrativo que o viabiliza assume natureza manifestamente ilegal. 

Cumpre não perder de vista que o modelo de Unidade de Inteligência Financeira (UIF) adotado no Brasil é de natureza administrativa, não se confundindo com órgãos de investigação criminal. Desse modo, a chamada “troca de informações”, referida na norma de regência, deve observar, obrigatoriamente, princípios próprios e caros ao sistema penal e processual penal, especialmente os da legalidade, proporcionalidade, razoabilidade, devido processo legal e reserva de jurisdição. 

Esse raciocínio conduz, de forma lógica e necessária, à conclusão de que os órgãos de persecução penal podem, no âmbito de investigações já instauradas, remeter documentos e informações ao COAF, os quais se somarão às informações já constantes em seus bancos de dados, para fins de análise de eventuais atividades ilícitas, nos termos da Lei nº 9.613/1998. 

O que efetivamente se verifica, portanto, é um legítimo intercâmbio de informações, e não a criação de uma nova categoria jurídica — o chamado “RIF por intercâmbio”, instituto absolutamente inexistente no ordenamento jurídico pátrio, salvo se e quando vier a ser autorizado por lei específica. 

Importante assinalar, ademais, que a elaboração dos RIF’s obedece a metodologia estritamente impessoal, baseada na classificação objetiva dos riscos, mediante processamento automatizado realizado pelo sistema CGRP (Central de Gerenciamento de Riscos e Prioridades) — ferramenta de inteligência que aplica filtros e critérios pré-estabelecidos. Nem todos os dossiês encaminhados pelas pessoas obrigadas — nos termos do artigo 9º da Lei nº 9.613/1998 — são convertidos, automaticamente, em RIF’s. É o grau de risco detectado que justifica sua formalização. 

Assim, caso o compartilhamento de informações oriundas do Ministério Público ou da autoridade policial pouco ou nada agregue aos dados já constantes nos bancos do COAF — lembrando que as entidades obrigadas possuem prazo máximo de 45 dias para o envio dessas informações —, nenhum RIF poderá ser validamente produzido. 

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já pacificou entendimento no sentido de que, à luz da Lei nº 5.172/1966 (art. 198, §§ 2º e 3º, I), é lícito que a Receita Federal do Brasil comunique às autoridades competentes os fatos que configurem indícios de ilícito penal, mediante representação fiscal para fins penais. Contudo, não se admite, em hipótese alguma, que o Ministério Público proceda à requisição direta de dados fiscais. 

Não pode, evidentemente, ser diferente no tocante aos RIF’s elaborados pelo COAF, que opera, insista-se, com informações acobertadas pelo sigilo bancário, conforme previsão da Lei Complementar nº 105/2001. O fato de a legislação impor ao COAF o dever de comunicar às autoridades competentes a detecção de operações financeiras atípicas ou suspeitas não legitima, de forma reflexa, que essas mesmas autoridades requisitem diretamente tais relatórios, à revelia do controle jurisdicional. 

 

Inequívoco que qualquer informação que exponha dados acerca da origem, do destino, do valor ou da data de operações financeiras importa, inexoravelmente, em violação da esfera de intimidade econômica e financeira do indivíduo. Não se exige que o conjunto informacional revele todos os dados bancários do investigado em determinado período; basta que contenha qualquer elemento capaz de vulnerar sua privacidade. Pouco importa a quantidade de dados, mas sim a natureza qualitativa e sensível do conteúdo. 

Ademais, por sua própria essência, o COAF é órgão de inteligência, não de investigação criminal. Por conseguinte, não lhe compete — e nem lhe é permitido — sair à busca de elementos que visem, direta ou indiretamente, à formação de juízo acerca da autoria e materialidade de ilícitos penais. 

Suas atribuições limitam-se a receber, analisar e disseminar informações que indiquem, em caráter meramente prospectivo, a possibilidade (e não a probabilidade) da ocorrência de operações suspeitas, cabendo às autoridades competentes, no exercício regular de suas funções, adotar as providências cabíveis, desde que dentro dos parâmetros legais e constitucionais. 

O COAF, pois, exerce atividade de refinamento dos dados recebidos das entidades obrigadas, mediante processamento impessoal, orientado por algoritmos e critérios objetivos parametrizados no sistema SISCOAF, sem que lhe seja dado ampliar esse escopo para buscar dados provenientes de fontes externas, salvo aqueles obtidos de forma aberta ou formalmente comunicados pelos órgãos de persecução penal. 

Por conseguinte, ainda que se admitisse — ad argumentandum tantum — a possibilidade de um chamado RIF por intercâmbio, este deveria, necessariamente, derivar do mesmo fluxo regular de tratamento dos dados que originam os RIF’s espontâneos, com observância estrita dos critérios de risco definidos pela plataforma, sem qualquer abertura para atuação prospectiva dirigida à busca de elementos de autoria e materialidade do delito. 

Noutras palavras, é juridicamente inadmissível que o COAF utilize quaisquer informações além daquelas remetidas pelas entidades obrigadas (artigo 9º da Lei nº 9.613/1998), das informações disponíveis em fontes abertas e daquelas eventualmente aportadas pelos próprios órgãos de persecução penal, sempre no estrito limite de sua função administrativa de inteligência financeira. 

Cumpre, ademais, destacar que o acórdão que deu origem ao Tema 990 não deixou claro — nem poderia — quem sejam, de fato, as “autoridades competentes” legitimadas a requisitar os chamados RIF’s por intercâmbio, especialmente diante do postulado da legalidade estrita, que impõe, como condição inafastável, a prévia definição, em lei formal, dos sujeitos legitimados, das finalidades e dos procedimentos que envolvem qualquer mitigação de direitos fundamentais. 

Essa problemática se agrava, sobremodo, porque inexiste, seja na Lei Complementar nº 105/2001, seja na Lei nº 9.613/1998, ou ainda na Lei nº 13.974/2020, qualquer comando normativo que imponha ao COAF o dever jurídico de compartilhar os RIF’s com as denominadas “autoridades competentes”. 

A rigor, o Supremo Tribunal Federal não pode, nem lhe é dado, legislar sobre a matéria, haja vista que a restrição a direitos fundamentais — sobretudo à privacidade, ao sigilo bancário e à proteção de dados sensíveis — exige, em atenção ao princípio da legalidade estrita, a edição de lei formal, que discipline, com precisão, os pressupostos, os limites e as garantias do exercício de qualquer poder estatal que importe intervenção no âmbito de proteção desses direitos. 

A doutrina de Gilmar Mendes é incisiva ao assentar que “os direitos individuais enquanto direitos de hierarquia constitucional somente podem ser limitados por expressa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata)”3. 

Em suma, toda e qualquer limitação a direitos fundamentais deve ser fundada em lei em sentido formal e material, em fiel observância ao princípio da reserva legal restritiva, sob pena de nulidade absoluta dos atos administrativos e processuais que impliquem sua mitigação. 

Por conseguinte, o compartilhamento de dados acobertados por sigilo, notadamente bancário e fiscal, somente se mostra juridicamente possível se houver autorização expressa, clara e específica na legislação, a qual deve indicar, de maneira inequívoca, as autoridades competentes, as hipóteses de incidência e os procedimentos aptos a compatibilizar a persecução penal com a proteção dos direitos fundamentais. 

Nesse sentido, leciona, com absoluta precisão, Heloísa Estelita, em alentado e rigoroso estudo sobre o tema, segundo a qual, embora o Ministério Público tenha competência — rectius, atribuição constitucional — para realizar requisições no curso de suas funções institucionais, “o atendimento que implique tratamento de dados pessoais só pode ser efetuado se houver autorização legal e proporcional. Um entendimento que autorizasse os membros do MP a obtenção direta, junto às instituições financeiras ou ao COAF, de informações cobertas por sigilo financeiro, permitiria que, como dito, pela porta dos fundos (back door), fosse corroído o regime constitucional (e infraconstitucional) de proteção de direitos fundamentais. Isso implicaria, ademais, verdadeira fusão informacional entre os dois órgãos, pois, por essa via, o Ministério Público obteria acesso a um imenso conjunto de dados que o legislador outorgou apenas ao COAF. Esses mesmos limites valem, logicamente, para as autoridades policiais”4. 

Ninguém controverte que os Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s) elaborados pelo COAF, atualmente denominado Unidade de Inteligência Financeira (UIF), são constituídos a partir de informações financeiras acobertadas por sigilo, nos termos da Lei Complementar nº 105/2001. Nesse contexto, a requisição direta e “reversa” pelos órgãos de persecução penal, representa manifesta burla à proteção que a Constituição da República assegura ao direito fundamental à privacidade financeira e à intimidade patrimonial dos indivíduos. 

A meu sentir, revela-se juridicamente frágil — data venia — o argumento de que se ao COAF é conferida a atribuição legal de comunicar, espontaneamente, às autoridades competentes a identificação de operações financeiras com indícios de ilicitude, decorrentes da análise dos dossiês remetidos pelas entidades obrigadas, tal prerrogativa implicaria, de forma reflexa, autorização para que essas mesmas autoridades formulem requisições diretas em sentido inverso. 

Essa construção interpretativa, além de carecer de respaldo na literalidade da legislação vigente, subverte a lógica própria do modelo de inteligência financeira adotado no ordenamento jurídico pátrio, cujas finalidades se circunscrevem, com precisão, à prevenção da lavagem de capitais e do financiamento do terrorismo, não se confundindo — nem se podendo confundir — com atividade típica de persecução penal. Afirmar, pois, que “seria contraditório impedir o Ministério Público de solicitar ao COAF informações por esses mesmos motivos”5 revela equívoco hermenêutico. 

A obrigação imposta ao COAF (Lei nº 9.613/1998, art. 15), ao Banco Central do Brasil (Lei Complementar nº 105/2001, art. 1º, inciso IV, e art. 9º), bem como à própria Receita Federal do Brasil (Código Tributário Nacional, art. 198, § 3º, e art. 83 da Lei nº 9.430/1996), de comunicar às autoridades competentes a constatação de indícios da prática de ilícitos penais, não transmuta, ipso facto, os diplomas normativos de regência em verdadeira via de mão dupla, especialmente quando se encontra em jogo o direito fundamental à privacidade — do qual o sigilo bancário, fiscal e dos dados pessoais constitui corolário inafastável. 

A ratio dessa vedação reside no postulado da reserva legal, que impõe, de maneira categórica, a necessidade de previsão legal expressa, específica e taxativa, sendo absolutamente inadmissível qualquer interpretação extensiva, analógica ou integrativa que implique mitigação de direitos fundamentais. 

Se diversa fosse a compreensão, seria igualmente legítimo que o Ministério Público requisitasse diretamente à Receita Federal a quebra do sigilo fiscal de investigados, sob o argumento de que a própria administração tributária detém o dever legal de comunicar às autoridades competentes a ocorrência de ilícitos penais apurados no âmbito de seus procedimentos administrativos (CTN, art. 198, § 3º, I). 

Contudo, tal possibilidade tem sido reiteradamente repelida pelo Supremo Tribunal Federal, que, mais uma vez, reafirmou esse entendimento no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.393.219, de relatoria do eminente Ministro Edson Fachin, cuja ementa restou assim redigida: 

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA CRIMINAL. CRIMES DE ESTELIONATO MAJORADO, FALSIDADE IDEOLÓGICA E USO DE DOCUMENTO FALSO. COMPARTILHAMENTO DE DADOS FISCAIS COM O MINISTÉRIO PÚBLICO. TEMA 990 DA REPERCUSSÃO GERAL. REQUISIÇÃO DIRETA PELO ÓRGÃO DE PERSECUÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. No julgamento do RE 1.055.941, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, apreciado sob a sistemática da repercussão geral, o Plenário desta Corte Suprema firmou as seguintes teses: “I - É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional; II - O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.” 2. O poder requisitório do Ministério Público previsto no art. 129 da Constituição Federal e na Lei Complementar n. 75/1993 deve se dar nos moldes da Constituição Federal de 1988, que igualmente assegura o direito à privacidade, à intimidade e ao sigilo bancário e fiscal, consoante dispõe o art. 5º, incisos X e XII. 3. Embora o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 990 da repercussão geral, tenha autorizado o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira da UIF e de procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal, não permitiu que o Ministério Público requisitasse diretamente dados bancários ou fiscais para fins de investigação ou ação penal sem autorização judicial prévia, conforme se depreende da detida análise do julgado. 4. Agravo regimental desprovido. [RE 1393219 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 01-07-2024, DJe-s/n, divulg. 09-07-2024, public. 10-07-2024]. 

Esta, assim como inúmeras outras decisões emanadas do Pretório Excelso, revela, de forma cristalina e irrefutável, a absoluta impossibilidade de que os órgãos de persecução penal lancem mão de atalhos espúrios na obtenção de dados acobertados por sigilo, subvertendo, por via oblíqua, a cláusula da reserva de jurisdição, erigida como verdadeira garantia fundamental de proteção à privacidade, à intimidade e aos dados sensíveis. 

Tal orientação jurisprudencial restou inequivocamente assentada no voto proferido pelo eminente Ministro Edson Fachin, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.055.941, que deu origem à fixação do Tema 990, cuja ratio se amolda, verbo ad verbum: 

“[...] Em um estado de direito, não é possível se admitir que  órgãos de investigação, em procedimentos informais e não urgentes, solicitem informações detalhadas sobre indivíduos ou empresas, informações essas constitucionalmente protegidas, salvo autorização judicial. 

Uma coisa é órgãos de fiscalização financeira, dentro de suas atribuições, identificar indícios de crime e comunicar suas suspeitas aos órgãos de investigação para que, dentro da legalidade e de suas atribuições, investiguem a procedência de tais suspeitas. Outra, é o órgão de investigação, a polícia ou o Ministério Público, sem qualquer tipo de controle, alegando a possibilidade de ocorrência de algum crime, solicitar ao COAF ou à Receita Federal informações financeiras sigilosas detalhadas sobre determinada pessoa, física ou jurídica, sem a prévia autorização judicial. 

Tal agir não tem amparo legal, até porque tais informações não são urgentes, não havendo risco que o tempo necessário para a instauração de um procedimento formal submetido ao controle judicial as coloque em perigo. [...]” 

Nessa linha de ideias, assim como se veda, no tocante aos dados telemáticos, a revelação de informações referentes a datas, horários, localização via GPS, destinatários das comunicações, mensagens de aplicativos, fotografias e vídeos pessoais, também se impõe, em relação ao sigilo bancário, a mesma proteção constitucional, impedindo-se o descortinamento de dados que revelem valores específicos que transitaram pelas contas do investigado, com indicação de datas, favorecidos, aplicações financeiras, aquisição de bens, quitação de débitos, doações realizadas ou quaisquer outros gastos que exponham aspectos de sua vida privada. 

Ambas as situações — sigilo telemático e sigilo bancário —, quando desprovidas de prévia autorização judicial, traduzem indevida intromissão na esfera de intimidade e privacidade dos indivíduos, direitos estes expressamente resguardados pela Constituição da República, no artigo 5º, inciso X, com status de cláusula pétrea. 

Exaustivamente, repito: os dados e informações com os quais opera a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) decorrem diretamente de movimentações financeiras acobertadas pelo sigilo imposto pela Lei Complementar nº 105/2001, sobre as quais recai, de forma inequívoca, o dever de confidencialidade — inclusive no âmbito da própria UIF. 

Por tal razão, o Supremo Tribunal Federal tem firme entendimento no sentido de que a comunicação entre instituições financeiras e o COAF não configura quebra de sigilo bancário, mas sim mera transferência do sigilo, que se mantém íntegro no âmbito da unidade de inteligência, justamente em razão de sua natureza jurídica estritamente administrativa e não persecutória. 

Outro ponto digno de relevo é que, quando os RIF’s limitam-se a relatar valores globais, sem detalhamento das operações específicas, não se pode falar, rigorosamente, em violação à privacidade, pois, nessa hipótese, a ingerência sobre a intimidade mostra-se mínima e juridicamente tolerável, ponderada em face de outros interesses constitucionalmente protegidos, como a própria segurança pública e a repressão à lavagem de capitais. 

Deveras, mesmo naquilo que o próprio Supremo Tribunal Federal convencionou denominar de “transferência de sigilo”, a Lei Complementar nº 105/2001 impõe rígidos limites, restringindo as informações que podem ser compartilhadas à identificação dos titulares das operações e aos montantes globais mensalmente movimentados, vedando, expressamente, qualquer dado que permita a identificação da origem, do destino ou da natureza dos gastos, conforme dispõe seu art. 5º, § 2º. 

Diante desse quadro normativo, como admitir, em sã hermenêutica constitucional, que possa ser diferente com as informações transmitidas por meio dos RIF’s, frequentemente anexados aos autos de inquéritos e processos criminais, cuja divulgação pública, em juízo, traduz verdadeira quebra de sigilo bancário, sob a roupagem falaciosa de mero relatório de inteligência? 

É inaceitável, portanto, que o RIF contenha informações tão detalhadas, minuciosas e precisas, a ponto de dispensar a realização de diligências probatórias formais — como a própria quebra de sigilo bancário, devidamente autorizada pelo Poder Judiciário. A partir do momento em que se permite tamanha devassa na vida financeira do investigado, o RIF deixa de ser fonte de inteligência, passando a assumir natureza de prova direta, o que não se coaduna, em absoluto, com sua natureza jurídica e função institucional. 

Importante sublinhar que a própria Lei Complementar nº 105/2001, que regula o sigilo das operações financeiras, impõe limitações até mesmo às informações prestadas pelas instituições financeiras à administração tributária, exigindo que tais comunicações não contenham “qualquer elemento que permita identificar a origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados” (art. 5º, § 2º). 

Ora, se esse é o rigor imposto às informações destinadas ao Fisco, a fortiori os RIF’s, elaborados a partir dos dossiês encaminhados ao COAF, não podem, sob nenhuma hipótese, desbordar para detalhamento de situações que, ao fim e ao cabo, representam, em maior ou menor grau, verdadeira e inconstitucional quebra de sigilo bancário. 

Sendo de natureza eminentemente administrativa a função desempenhada pelo COAF, e não de investigação criminal, é imperioso reconhecer que o RIF apenas pode compartilhar conhecimento orientativo, jamais podendo se converter em meio de prova, cujo acesso demanda, de forma inafastável, prévio controle jurisdicional. 

Aliás, no plano estritamente técnico, os relatórios produzidos pela UIF, conhecidos como RIF’s, não podem sequer ser considerados, em sentido jurídico-processual, documentos, mas sim atos de documentação administrativa, como bem sublinhou o eminente Ministro Rogério Schietti Cruz, no voto proferido no julgamento do RHC nº 147.707/PA. 

Ocorre, todavia, que, na prática, longe de veicularem informações gerais acerca de movimentações atípicas, os RIF’s frequentemente exibem, com riqueza de detalhes, transações específicas de créditos e débitos, abrangendo informações protegidas por cláusula de sigilo. 

Admitir que se franqueie ao Ministério Público e às autoridades policiais o poder de requisitar diretamente ao COAF informações desse jaez, no grau de detalhamento com que são expedidos os RIF’s, representa flagrante paradoxo hermenêutico, especialmente frente à restrição imposta pela própria Lei nº 9.613/1998, que autoriza o acesso dos órgãos de persecução penal apenas aos dados cadastrais do investigado — tais como qualificação pessoal, filiação e endereço — já existentes na Justiça Eleitoral, nas operadoras de telefonia, nas instituições financeiras, nos provedores de internet e nas administradoras de cartões de crédito (art. 17-B). 

Afinal, de que serviria a restrição estabelecida no artigo 17-B da Lei nº 9.613/1998, se se admitisse, contraditoriamente, que o Ministério Público pudesse obter, diretamente do COAF, informações infinitamente mais sensíveis, intrusivas e detalhadas sobre a vida financeira dos investigados? 

Nada autoriza, no plano jurídico, “passar a carroça na frente dos burros”, sob o pretexto de celeridade ou de eficiência investigativa, tanto mais quando não há qualquer risco de perecimento das informações financeiras necessárias à investigação. Estas permanecem íntegras, armazenadas junto às instituições financeiras e podem ser validamente requisitadas, mediante prévia autorização judicial, desde que demonstrada sua imprescindibilidade à apuração dos fatos. 

De qualquer modo, se a informação constante no RIF revela — como de fato revela — datas de operações financeiras, valores movimentados, seus destinatários, favorecidos e todo o itinerário percorrido pelos recursos, resta absolutamente esvaziada a própria função do controle jurisdicional sobre o sigilo bancário, pois pouco ou nada sobra para ser objeto da intervenção judicial. 

Em síntese, admitir essa prática seria chancelar a corrosão, por via oblíqua, de uma das mais sólidas garantias constitucionais do Estado de Direito: a proteção da privacidade financeira e patrimonial, cuja mitigação, por sua extrema gravidade, somente se admite mediante lei formal, específica e sob estrita reserva de jurisdição, sob pena de subversão total da ordem constitucional. 

Orlando de Almeida Perri é Desembargador do Tribunal de Justiça  de Mato Grosso 





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