Estudar Direito é tarefa das mais instigantes. Aplicar Direito, no Brasil, ao contrário, é mister dos mais decepcionantes. Por aqui, estuda-se, estuda-se, mas nunca se tem certeza de nada. Pior: não se tem nem mesmo previsibilidade, uma vez que cada tema é julgado de várias maneiras, por várias pessoas/órgãos; ou de várias maneiras, pela mesma pessoa/órgão.
Como já se criticou em outra oportunidade , tampouco a Corte Suprema consegue ser coerente, o que é, de certa forma, um standard comportamental que se reflete nos tribu-nais inferiores. A única certeza que se tem é a de que não se pode ter certeza de nada.
Numa distorcida visão platônica, é como se o Direito estudado na Academia se asseme-lhasse àquele presente no mundo das ideias, ao passo que o Direito aplicado nos foros fosse — como, de fato, deveria ser — o Direito do mundo dos sentidos. O problema, no entanto, é que, no campo forense, o Direito aplicado nem sequer se aproxima ao ideal de Direito.
Analogicamente, pode-se dizer que o “o cavalo”, no mundo das ideias — em que tudo é perfeito, puro —, tem quatro patas, cascos, uma cabeça etc. O cavalo, no mundo dos sentidos, conquanto não seja “perfeito”, também possui essas características mesmas; ou seja, o cavalo do mundo dos sentidos pode não ser o cavalo ideal, mas ainda assim é um cavalo, e se pode perceber que de cavalo se trata.
No Direito, todavia, as coisas são completamente distintas.
Os ideais de justiça, estudados na Academia (mundo das ideias), no mundo dos sentidos (práxis forense), são completamente distorcidos, de modo tal que faz o Direito parecer ferramenta de ocasião, cujos resultados decisórios dependem apenas das pessoas que julgam, das pessoas que são julgadas e do que as pessoas esperam que seja julgado.
Dogmática, lógica, coerência? O que é isso, afinal?
Exemplo claro da ausência de cientificidade e coerência são as importações de teorias de sistemas jurídicos estranhos ao brasileiro e a miscelânea de tratamentos conferidos a determinadas matérias. No campo das nulidades, a importação, para o processo penal, do elástico princípio pas de nullité sans grief, conquanto possa parecer técnica sofistica-da para maximização da efetividade processual, nada mais é do que reprovável manipu-lação discursiva , a qual, por meio da linguagem, dá e tira direitos, como bem entende aquele que detém o monopólio do poder. O Direito, enquanto substantivo, estará sempre a depender da adjetivação do julgador, que pode inclusive tornar sem valia o substanti-vo.
Imagine-se o caso do juiz que estava de corpo presente na audiência, mas que não estava nem prestando atenção ao interrogatório, porque dedicava-se ao estudo de outro pro-cesso.
Com o diagnóstico da jurisprudência, que é rica em péssimos exemplos, pode-se prog-nosticar o julgamento da apelação, eventualmente interposta pelo réu, que muito prova-velmente será condenado:
O simples fato de o magistrado não prestar atenção na fala do réu não é motivo, por si só, para gerar a nulidade do feito, sobretudo porque o ato ficou devidamente gravado em sistema audiovisual, possibilitando posterior consulta, com fidedignidade de conteúdo. Ademais, não logrou o recorrente demonstrar qualquer prejuízo, limitando-se a invocar que a condenação é prejuízo presumido. Improcedência das razoes defensivas.
De que adianta ter o Direito, enquanto substantivo (substância), se os adjetivos são apli-cados como bem entende o julgador? A atual sistemática de nulidade, no Brasil, a con-tinuar nos moldes em que está, figura como garantia do Estado, e não do cidadão pro-cessado, dado que, no mais das vezes, as regras são contorcidas para “convalidar” atos defeituosos praticados — ou omitidos — pelos próprios agentes estatais, tudo com o objetivo de “não dar causa para a impunidade”.
Esta lamentável importação do pas de nullité sans grief para o processo penal constitui verdadeiro “cheque em branco”, a ser preenchido pelo julgador, com os valores, prazos e beneficiários que ele achar necessário. Dito de modo mais sofisticado, com o auxílio de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, o conceito de prejuízo, por ser indeterminado, “vai encontrar seu referencial semântico naquilo que entender o julgador”.
A fórmula é desenhada para se anular somente o que se quer, quando e para quem se quer, em evidente contrassenso. A nulidade, sem embargo, não é algo dado pelo juiz, ao seu bel prazer, senão que efeito cogente de inobservância da forma legal, justo porque, como anota Aury Lopes Junior, “no processo penal, forma é garantia. Se há um modelo ou uma forma prevista em lei, e que foi desrespeitado, o lógico é que tal atipicidade gere prejuízo, sob pena de se admitir que o legislador criou uma formalidade por puro amor à forma, sem maior sentido”.
Em vez de se importar princípios de nomes pomposos ¬— estranhos ao processo penal, inclusive ¬—, dever-se-ia adotar uma postura séria, coerente e, sobretudo, uniforme nesse delicado campo do processo, com o fito de evitar que o espectro de subjetividade do julgador ¬— seu poder de adjetivação — acabe por neutralizar a garantia da forma pro-cessual, destacadamente porque o aumento de discricionariedade/subjetividade do jul-gador acaba por dar ao processo penal tonalidade inquisitiva.
Nesse aspecto, relevantes são os aportes de Rosmar Rodrigues Alencar, para quem “a classificação uniforme dos vícios tem o objetivo de reduzir o espaço de subjetividade, da contingência que tem especial lugar nas nulidades processuais penais”. Ao tratar do aspecto pragmático das nulidades, o autor chama a atenção para a necessidade de respei-to aos limites impostos nos textos legal e constitucional, notadamente na declaração do núcleo dos direitos fundamentais processuais penais, dado que a exacerbada aplicação de princípios próprios das nulidades relativas ou de inspiração processual civil ¬— como é o caso do pas de nullité sans grief — tem o efeito de mitigar a efetividade dos direitos fundamentais.
O cenário atual é perturbador e instaura verdadeira crise de legalidade no sistema de contenção do arbítrio estatal, na medida em que, além de neutralizar o efeito nulificador que deve ser aplicado aos atos processuais atípicos, impõe, ilegitimamente, ao imputado o dever de “cooperação processual”, noutra terrível e equivocada importação de princí-pios alheios à sistemática do processo penal, cuja finalidade é a contenção do poder punitivo estatal.
Num salto vocabular, do sofisticado ao trivial, a jurisprudência tem mesclado o pas de nullité sans grief aos princípios da boa-fé objetiva e da cooperação processual, todos inaplicáveis no processo penal, com a finalidade de proibir a denominada “nulidade de algibeira”, a qual ocorre quando o sujeito passivo do processo penal permanece em si-lêncio, reservando a arguição do vício para o momento que lhe for mais conveniente.
Potencializaram-se as possibilidades de convalidação de atos defeituosos de tal modo que não se pode mais antever quando uma nulidade ¬— seja ela absoluta ou relativa ¬— será reconhecida no âmbito do processo. As decisões remetem mais à história de George Orwell, em A revolução dos bichos, na qual sempre há uma cláusula de exceção a legi-timar os abusos praticados pelos detentores do poder.
Retornando à analogia platônica, é difícil de acreditar no que vem se tornando o Direito brasileiro ¬— o mundo dos sentidos — no quesito nulidades. Não bastasse o amplo grau de subjetividade e insegurança que vigora neste campo, os tribunais — para piorar o que já estava ruim — têm terceirizado a responsabilidade do Estado de instaurar e manter um processo hígido para aquele que se vê imbricado num processo penal: o processado não pode mais adotar uma estratégia processual que se lhe afigure favorável, mesmo que que “vítima” de um processo viciado.
Ora, na linha do que preleciona Rosmar Rodrigues de Alencar, “[o]s órgãos de persecu-ção penal devem tomar as cautelas para que os atos sejam editados de forma correta, não sendo exigível que o acusado auxilie o Estado a cooperar para a sua própria conde-nação”. Rosmar, com certeza, no mundo ideal, tem razão; por que motivo custa tanto reconhecer isso no mundo dos sentidos, no “real mundo do direito”?
Parafraseia-se, por fim, com as devidas adequações, o pessimismo de Arthur Schope-nhauer para o Direito, para dizer que o processo é dor, porque vontade é desejo daquilo que não se tem (respeito às garantias fundamentais); é ausência, privação e sofrimento.
Difícil é, pois, ser otimista.
Filipe Maia Broeto. Advogado criminalista e professor de direito penal e processo penal. Mestrando em Direito Penal Econômico (UNIR-ESP), é especialista em Direito Penal Econômico (PUC-MG), Processo Penal (Coimbra/IBCCRIM) e Ciências Penais (UCAM/RJ). Autor de livros e artigos jurídicos, publicados no Brasil e no exterior.