Várzea Grande, bairro periférico São Mateus, 23 de fevereiro de 2014. Quatro homens chegam encapuzados e armados com escopeta calibre 12 e revólver calibre 38 em um bar. “Quem tem passagem [pela polícia]? Quem não tem vai ter agora”, diziam os criminosos, segundo um sobrevivente. Entre os assassinos, um estava de tênis e três, de coturnos. Em seguida, vários tiros são disparados nas costas de cerca de 10 pessoas, encostadas na parede: cinco morrem e três ficam feridas na chacina. Os que sobreviveram se fingiram de mortos.
O confronto de balística, soube-se depois, não poderia ser feito para descobrir se a arma apreendida e as perfurações nas vítimas batiam. Isso porque estojos caem após os disparos feitos pelos bandidos com o tipo de calibre utilizado. No local do crime, porém, eles não foram encontrados. A suspeita é a de que alguém passou recolhendo-os. Esse detalhe técnico só é de conhecimento de profissionais, o que leva a polícia a suspeitar que a escolha da arma de grosso calibre não foi por acaso.
Cuiabá, região central e nobre, 24 de fevereiro de 2014. Um homem armado invade uma casa de câmbio e anuncia o assalto. Dentro da unidade, dois policiais militares em horário de trabalho haviam entrado para usar o banheiro. Troca de tiros. Uma atendente de 21 anos é atingida e morre. Um dos policiais morre.
Na imprensa e nas redes sociais, como de costume, alvoroço. Perdemos uma “jovem sociável e um PM corajoso”, diziam os jornais. No Facebook, o noivo da atendente, que fez aniversário no dia do assassinato da companheira, desabafava: “Deus, me ajude”.
Eu, que me interesso profundamente por casos como esses, me comovi e passei o dia tentando entender fatos que não têm explicação. Realmente, a brutalidade com que vidas são tratadas é quase que animal. Em um minuto, você está trabalhando; no outro, está morto.
No WhatsApp, grupos tentavam decifrar o que teria de fato acontecido. Até a hipótese de crime passional fora levantada, já que, naquele momento, nenhuma informação era confirmada.
A comoção foi generalizada. O crime na região central da capital do Estado chocou a sociedade e instigou até mesmo jornalistas acostumados a noticiar barbáries a espalharem aos quatro cantos do mundo o quanto vivemos um momento de colapso, de extrema e desmedida violência. É como se tivéssemos nos esquecido de que, apenas um dia antes, cinco pessoas perderam a vida de uma só vez, de maneira tão horrível quanto a da casa de câmbio.
Mas é verdade, ingenuidade da minha parte. Quando o tiro atinge o pobre, o favelado, é só mais um. Não é esse o pensamento? De que valem todas as suspeitas de que tratava-se de um grupo de extermínio desumano e covarde no bairro periférico?
Desculpando-me previamente pela notícia chocante de última hora, informo: não, não estamos vivendo um momento de colapso somente agora. Na periferia, o holocausto, os assassinatos jamais desvendados ou punidos, ocorrem há muitos anos. Cláudia Silva Ferreira, morta e arrastada por 350 metros por uma viatura da PM após suposta troca de tiros entre policiais e traficantes em uma favela do Rio de Janeiro, é mais um exemplo. E ainda tem os amarildos, franciscos, marias (...).
O gigante não acordou, sempre esteve acordado. A diferença é que a criminalidade desceu o morro e agora atinge regiões nobres, mata jovens de classe média e policiais militares.
O que quero dizer é: indignemo-nos! Todos os dias, em todos os casos, não só quando a vítima é do nosso meio de convívio. O terror, o medo e a violência estão em todos os lugares, há muito tempo, não só dentro da bolha em que nos acostumamos a viver.
THAISA PIMPÃO é repórter