Estamos de volta para discutir, de forma acessível e baseada na ciência, temas ligados à psicologia e saúde mental e à psicologia de maneira geral. Nosso objetivo é sempre mantê-los informados sobre o que há de mais atual na produção científica da área.
Acredito que vocês estejam gostando bastante dos nossos conteúdos, pois, mesmo nesse breve período em que estive sem publicar novos textos, recebemos mensagens com sugestões de temas em nossos canais de comunicação. Isso me fez perceber o quanto ainda há dúvidas, mitos e incertezas sobre a atuação da psicologia. Entre os assuntos mais pedidos, está a avaliação psicológica, especialmente no contexto do trânsito.
Muito além de marcar X em um papel, a avaliação realizada por psicólogos credenciados busca entender se o futuro motorista tem condições emocionais e cognitivas para conduzir com segurança. Neste texto, explicamos o que, de fato, é avaliado — e por quê
Por isso, vamos começar uma série de conteúdos explicando melhor como funciona esse processo. E, para tornar tudo mais didático, convido você a imaginar a seguinte situação:
Cena: um cruzamento em Cuiabá-MT
Você está no volante, parado no sinal vermelho de uma grande avenida de Cuiabá. Faltam 50 segundos para o sinal abrir. De repente, um vendedor de caldo de cana se aproxima, insistindo para que você compre. Ao mesmo tempo, um rapaz se oferece para limpar o seu para-brisa. Logo em seguida, um motoqueiro passa pela esquerda, de forma imprudente.
Você recusa o caldo de cana, mas aceita o serviço do limpador de vidros. Quando faltam apenas 15 segundos para o sinal abrir, você começa a procurar dinheiro para pagar o serviço. A poucos segundos do sinal verde, você finalmente entrega o valor ao rapaz, nota que o vendedor corre para a calçada e que o motoqueiro furou o sinal. A contagem chega ao fim e você se prepara para arrancar com o carro, respeitando a sinalização.
Quais processos mentais estavam acontecendo nessa cena?
Por trás dessa situação aparentemente simples, diversos processos psicológicos estão ocorrendo de forma simultânea. Na avaliação psicológica para o trânsito, o psicólogo busca observar e mensurar exatamente essas capacidades, que são essenciais para uma direção segura. Vamos listar e explicar algumas delas:
Atenção concentrada
É a capacidade de focar em um único estímulo por um período contínuo. No exemplo, o motorista mantém a atenção focada na sinaleira, monitorando o tempo para agir no momento correto.
Atenção alternada
É a habilidade de alternar o foco entre diferentes estímulos. Aqui, o motorista alterna sua atenção entre o semáforo, o vendedor de caldo de cana e o rapaz que limpa os vidros.
Atenção dividida
Refere-se à capacidade de lidar com múltiplas tarefas ao mesmo tempo. O motorista, simultaneamente, observa o sinal, interage com duas pessoas, percebe a infração do motoqueiro e ainda prepara o carro para sair.
Memória
A memória está envolvida quando o motorista utiliza conhecimentos prévios para interpretar situações. Ao perceber o motoqueiro furando o sinal, ele reconhece que isso é uma infração porque lembra das regras de trânsito que aprendeu.
Raciocínio e inteligência
Essas funções envolvem julgar, tomar decisões e resolver problemas. O motorista avalia se vale a pena comprar o caldo, se precisa da limpeza dos vidros e se pode agir com segurança, tudo em frações de segundo.
Traços de personalidade
Durante toda a cena, o comportamento do motorista reflete traços de sua personalidade, como autocontrole, empatia, tolerância à frustração e respeito às regras sociais. Mesmo sob pressão, ele não age com agressividade ou impulsividade, o que é fundamental no trânsito.
E como isso é avaliado pelo psicólogo do Detran?
Esses processos são investigados por meio de testes psicológicos validados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), entrevistas clínicas e, se necessário, outros recursos técnicos. O psicólogo pode solicitar relatórios complementares de outros profissionais da saúde (como médicos, psiquiatras, fonoaudiólogos ou terapeutas) para compreender melhor o funcionamento da pessoa avaliada, especialmente em casos de deficiência ou transtornos.
Por isso, se você é pessoa com deficiência (PcD) ou possui alguma condição de saúde mental ou neurodivergência (como TEA ou TDAH), é fundamental levar:
* Laudos médicos atualizados;
* Relatórios de acompanhamento terapêutico (quando houver);
* Documentos que descrevam sua funcionalidade e habilidades cognitivas;
* Informações que ajudem o psicólogo a entender seu funcionamento no contexto da direção.
Assim, a avaliação será mais justa, completa e ética. Lembrando que o psicólogo não está ali para reprovar ou aprovar com base em preconceitos, mas para analisar se você apresenta os requisitos necessários para uma direção segura, com ou sem adaptações.
Conclusão
Dirigir envolve muito mais do que saber operar um carro. É uma tarefa complexa, que exige equilíbrio emocional, atenção, julgamento e respeito às regras. A avaliação psicológica no contexto do Detran é uma ferramenta para garantir a segurança no trânsito — para o condutor e para todos ao redor.
Nailton Reis é Neuropsicólogo Clínico em Cuiabá-MT - CRP 18/7767