Entre 2023 e 2024, a Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Deddica) de Cuiabá abriu 657 procedimentos sobre violência contra crianças e adolescentes. Desses, 498 exigiam escuta especializada — entrevista feita com vítimas de violência — mas 319 (64%) não foram realizadas. Mais da metade das crianças e adolescentes que foram à delegacia para denunciar abusos não foram ouvidas durante a investigação preliminar.
Das 153 escutas realizadas, muitas demoraram a acontecer: em 21 casos, o tempo de espera passou de 121 dias. Além disso, 243 investigações também levaram mais de 121 dias para serem concluídas. Em casos extremos, a espera chegou a 405 dias para a escuta e 464 dias para encerrar a investigação. Nos crimes sexuais, os dados são ainda mais graves: dos 197 registros, 110 vítimas (55,83%) não foram ouvidas, e 100 procedimentos levaram mais de 121 dias para conclusão.
As informações fazem parte de levantamento realizado pelo Tribunal de Contas de Mato Grosso (TCE-MT), como parte da Fiscalização Nacional Coordenada sobre a Violência Infantil - “Infância Segura”. Sob relatoria do conselheiro Waldir Teis, que também preside a Comissão Permanente de Segurança Pública do TCE-MT, o processo foi apreciado na sessão ordinária do último dia 29.
“Esse trabalho teve o objetivo de apresentar informações sobre as ações e políticas públicas desenvolvidas na prevenção e no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes em Mato Grosso, um segmento que está deixando muito a desejar, principalmente no que diz respeito à exposição que estas crianças estão enfrentando hoje dentro do nosso sistema de segurança pública", disse o relator.
Apontamentos
As principais deficiências identificadas pelo levantamento foram: a ausência de integração e coordenação entre os órgãos do Sistema de Garantias de Direitos para Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência (SGDCA); a falta de estruturas e destinação de recursos adequados para a execução das políticas; a escassez de dados confiáveis para embasar a tomada de decisões e o déficit na capacitação de profissionais que atuam na rede de proteção.
Entre os 20 estados avaliados, sete ainda não possuem um fluxo claro para orientar profissionais da educação sobre como agir diante de revelações ou sinais de violência, entre eles, Mato Grosso. A auditoria constatou que, embora existam ações pontuais, a Secretaria de Estado de Educação (Seduc) e a Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá (SME) não possuem um procedimento oficial regulamentado. O levantamento também mostrou que a prioridade prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente para crianças de 0 a 6 anos vítimas de violência é apenas formal.
Orçamento
No levantamento, realizado pela 2ª Secretaria de Controle Externo do TCE-MT, foi verificado ainda que, tanto o Estado quanto a Prefeitura de Cuiabá, não possuem em suas peças orçamentárias destinação específica para as ações de prevenção e enfrentamento da violência contra as crianças e adolescentes.
"Em síntese, observou-se que há uma significativa deficiência na alocação e execução de recursos públicos específicos para a prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes no Estado e na Capital. A ausência de dotação orçamentária específica direcionada para essa finalidade resulta em uma fragilidade na implementação de políticas públicas duradouras e eficazes, bem como não corresponde à real necessidade de enfrentamento à violência infantil", salientou o conselheiro.
Delegacias especializadas
A Deddica, com sede em Cuiabá, é a única delegacia especializada sobre o tema em todo o estado. Em outros municípios, existem unidades especializadas para mulheres e idosos, com atendimento estendido a crianças e adolescentes, quais sejam: Várzea Grande, Barra do Garças, Cáceres, Primavera do Leste, Rondonópolis e Sinop.
Após o registro do boletim de ocorrência, é instaurado o auto de investigação preliminar, que visa apurar a existência do crime e sua gravidade e, caso haja necessidade de escuta especializada, é no decorrer desse procedimento que ela é realizada, com uma equipe multidisciplinar formada por psicóloga e assistente social.
"Diante do exposto, a equipe de auditoria verificou que há uma baixa resolutividade dos Autos de Investigação Preliminar – AIP e uma alta média de dias para que as crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência realizem a escuta especializada. Ambas as situações são de natureza gravíssima, uma vez que os fatos contribuem em muito para que as crianças e os adolescentes vítimas de violência estejam vulneráveis a novas investidas e ataques dos criminosos/violentadores. A demora da PJC/MT em atender de imediato os casos de violências promove a impunidade do agressor e pior, a continuidade da violência contra a criança e o adolescente", argumentou o relator.
Patrulha Henry Borel
A baixa efetividade da patrulha Henry Borel, que visa atuar na garantia do atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar, foi outro aspecto identificado em Mato Grosso. O levantamento aponta que não tem ocorrido a proteção, a prevenção, o monitoramento e acompanhamento das crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar, bem como não foram iniciadas as tratativas para a efetiva implantação da lei.
Também foi constatado que há interferência de facções criminosas nas unidades de saúde, o que gera insegurança na elaboração das notificações compulsórias durante o atendimento das vítimas.
Encaminhamentos
Durante a sessão plenária, o conselheiro Guilherme Maluf fez uso da palavra e destacou a importância do debate sobre políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes. Ele propôs a realização de um seminário temático e obteve a aprovação do presidente do TCE-MT, conselheiro Sérgio Ricardo. O evento será realizado no segundo semestre de 2025 e deve reunir diversas instituições em torno de um debate técnico e multidisciplinar para discutir a atuação do poder público em áreas como educação, saúde, acolhimento e combate à violência.
Com aprovação por unanimidade, o processo determinou a realização de uma auditoria especial sobre o tema da violência contra crianças e adolescentes, notificação da Secretaria de Estado de Segurança Pública e encaminhamento de cópia do levantamento aos órgãos competentes que trabalham na defesa e proteção infantojuvenil.