O caso da deputada Júlia Zanatta (PL-SC), que levou sua filha de 4 meses para o motim protagonizado por parlamentares bolsonaristas na Câmara dos Deputados nesta semana, carrega indícios de violação ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). A avaliação é da presidente da Comissão de Defesa da Criança e do Adolescente da seção de São Paulo da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Thaís Dantas. Segundo ela, o caso deve ser investigado.
Caso politizado
A advogada defende que a Câmara dos Deputados seja um espaço acolhedor a crianças e adolescentes. Mas, no caso de Zanatta, que participou da ocupação da Mesa Diretora com a filha pequena, a bebê foi "utilizada como objeto" —e não como sujeito de direitos.
Depois do incidente, o deputado federal Reimont (PT-RJ) acionou o Conselho Tutelar e pediu que o órgão tomasse providências contra a parlamentar.
"O mais importante é olhar para uma criança ou um bebê como um indivíduo, um sujeito de direitos. Esse caso está tendo uma cor muito politizada. Não é possível fazer um julgamento dessa situação, trata-se de um alerta de que há indícios de que a criança foi tratada como um objeto e não como um sujeito".
Mães e crianças em espaços públicos e de poder
Não é incomum que deputadas sejam vistas no plenário com seus filhos pequenos. Em 2021, Talíria Petroni (PSOL-RJ) chamou a atenção ao amamentar a filha, Moana Mayalú, enquanto trabalhava. Ao UOL, a deputada federal do PSOL-SP Sâmia Bonfim disse já ter levado o filho para a Câmara. Segundo ela, não há infraestrutura adequada para atender a necessidade de parlamentares que são mães.
No caso de Zanatta, contudo, a avaliação da advogada é que não se tratava de uma situação de trabalho comum. Para conter a ocupação de parlamentares bolsonaristas na Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) ameaçou acionar a Polícia Legislativa contra os deputados amotinados. O impasse durou alguns minutos, em meio a empurrões.
Crianças devem ter acesso e atuação em espaços políticos, principalmente no contexto que vivemos de desigualdade no campo da política do cuidado, ou seja, em que mulheres mães ficam sobrecarregadas e precisam ocupar esses espaços juntamente com seus filhos. A Câmara dos Deputados deveria ser um espaço mais amigável e acolhedor para crianças e adolescentes. Mas a análise da situação de risco deve ser considerada.”
“Somente pessoas diretamente envolvidas nesse caso poderão dar respostas sobre o que ocorreu ali. Mas era um bebê tão pequenininho que, independentemente das alegações dos dois lados, a criança segue sendo tratada como um objeto que precisa ser humanizado.”
“O ambiente ao qual a criança é exposta com certeza deve ser levado em consideração. Assim, é possível analisar se ela está ou não sob risco.”
O que diz o ECA
No entendimento da presidente da Comissão da OAB, pelo menos seis artigos do ECA são aplicáveis ao caso da deputada Zanatta. Segundo ela, cabem desde artigo mais gerais, como o 1º e o 4º, até artigos mais específicos, como o 17, que trata da preservação da imagem, identidade e autonomia das crianças.
“Há indícios de violação do ECA que precisam ser apurados para que a criança não fique ainda mais vulnerabilizada. A situação precisa ser apurada para que eventuais medidas de responsabilização sejam condizentes.”
“O artigo primeiro dispõe da proteção integral à criança e ao adolescente. O artigo 4º diz que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar direitos à criança. Cabe pensar ainda para essa situação o artigo 15 para este caso, que reforça que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, e não apenas objetos de proteção.”
“Também é aplicável o artigo 5º, que diz que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”
“Embora não seja responsabilidade exclusiva de mães e pais o cuidado com as crianças, eles têm grande responsabilidade. Esse binômio de pai e mãe olhando para a criança é muito forte. Pensando nisso, faz muito sentido olhar para esses artigos e pedir uma investigação.”
“É importante lembrar ainda o que pode acontecer a partir desse episódio: a geração de imagens, fotos, vídeos e memes. Isso representa uma possível violação do artigo 17 do ECA.”
Atuação do Conselho Tutelar
Reimont, que é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, encaminhou um ofício ao Conselho Tutelar, publicado nas redes sociais, argumentando que o episódio "pode configurar situação de exposição indevida de uma criança a risco". Thaís Dantas afirma que a atuação do órgão é válida num caso como esse, principalmente porque o Conselho, explica ela, não tem somente atribuições punitivas, mas também reparadoras.
“Com esses mencionados indícios, há a possibilidade de atuação do Conselho Tutelar para uma possível reparação. Mesmo que a situação em si tenha se encerrado, faz sentido manter a apuração do Conselho Tutelar para o efeito de reparação. O artigo 136 do ECA estabelece as atribuições do órgão.”
“Se se entender que foi uma situação de abuso, o atendimento do Conselho Tutelar é cabível. A retirada da criança do convívio dos pais ocorre somente em casos extremos. Nesse caso, há a necessidade de aconselhar pais; essa seria a medida mais adequada.”
“Um ponto importante é que o Conselho Tutelar não é apenas um órgão com atuação em situações extremas com crianças em vulnerabilidade e com funções punitivas. A depender do entendimento, se houve ou não infração administrativa, o Conselho Tutelar pode comunicar o fato e expedir notificações para diferentes órgãos, incluindo o Ministério Público, já que o Conselho não tem poder de investigação.”
Avanços na política de cuidado
O caso abriu debate sobre o acesso de mães e crianças a espaços de trabalho e de poder, e Dantas defende que ele impulsione outras discussões, como a necessidade de políticas públicas para a primeira infância e políticas de assistência às mães —as chamadas políticas de cuidado.
“O que fica desse caso é a necessidade de avançar em enxergar a criança e adolescente como sujeitos de direitos e não objetos. O segundo ponto é aproveitar a discussão gerada como ponto de partida para avançar na política pública de cuidados.”
“Nessa situação, a deputada não é uma mulher em vulnerabilidade, e mesmo assim mobilizou discussões. Se usarmos essa situação para alertar outras mulheres, vamos ter clareza sobre o quanto precisamos avançar na política de cuidado para que não haja sobrecarga feminina no mercado de trabalho.”
"Fui por necessidade. É o meu trabalho", diz deputada
Ao UOL, a deputada disse que filha está em fase de amamentação exclusiva e por isso a levou à Câmara. Zanatta afirma que sua licença-maternidade se encerrou dia 26 de julho e que teria condições de fazer trabalho remoto.
“Devido à prisão de [ex-presidente Jair] Bolsonaro e aos últimos acontecimentos, resolvi de última hora ir a Brasília. Não é que eu queria fazer isso, é uma necessidade quando a criança quer peito toda hora.”
“Tinha que estar com a minha bebê, estou com ela onde eu quiser estar. Eles que quiseram fazer um uso político da minha presença com ela, quiseram criar um factoide. Poderiam ter ignorado como eu faço quando vejo outras deputadas amamentando.”
“Tinha que estar ali porque é o meu trabalho. Se pudesse, a teria deixado em casa, igual faço com minha outra filha de 5 anos. Teve um momento em que me sentei na cadeira da presidência [da Câmara] e comecei a embalar porque ela começou a chorar. Não me senti em risco, não colocaria minha filha em risco.”
Mariazinha
Segunda-Feira, 11 de Agosto de 2025, 16h16Carlos Nunes
Segunda-Feira, 11 de Agosto de 2025, 15h27