O Tribunal de Contas da União (TCU) investiga um desvio de R$ 40 milhões dos cofres do Conselho Federal de Odontologia (CFO) por meio de um esquema de pirâmide financeira. Ao todo, a operação irregular movimentou cerca de R$ 100 milhões entre 2021 e 2022. Atualmente, há 690 mil profissionais de odontologia no Brasil registrados no CFO, sendo 382 mil cirurgiões-dentistas.
O desvio milionário envolveu diretores e ex-diretores da entidade em repasses à empresa Solstic Capital, Investimentos e Participações Ltda., do empresário Flávio Batel, morto em novembro de 2024. A denúncia obtida pela coluna e apurada pelo TCU aponta o atual presidente do CFO, Cláudio Yukio Miyake, secretário-geral da entidade na época das supostas irregularidades, como “operador financeiro da estrutura empresarial que recebeu os aportes, tendo sido possivelmente o principal articulador para que o CFO investisse recursos públicos na pirâmide financeira da Solstic”.
O documento pede “o afastamento cautelar de Cláudio Yukio Miyake da presidência do CFO, bem como de Nazareno Ávila, Ataíde Mendes Aires, Élio Silva Lucas e Roberto de Sousa Pires dos cargos que ainda ocupam no Conselho Federal de Odontologia, considerando que aprovaram as contas dos exercícios em que ocorreram os aportes à Solstic, sendo corresponsáveis pelos danos causados”.
De acordo com as informações levadas ao TCU, o empresário Flávio Batel teria se aproximado de Miyake por intermédio do também empresário Carlos Alberto Kubota, sócio do presidente do CFO no Instituto Educacional União Cultural, em São Paulo. A Solstic Capital, de Flávio Batel, oferecia uma comissão de 5% a cada empresário que atraísse novos investidores, o que teria motivado o convite de Kubota a Miyake.
Depois do início dos aportes do CFO, que se tornou o lastro financeiro do esquema, Batel e Kubota fundaram em sociedade a B-Life Saúde Médica Ltda., empresa destinada ao “fornecimento de serviços de cuidado com a saúde humana, por meio de hospitais, centros médicos hospitalares e clínicas”. A B-Life tinha participação da KHealth LLC, com sede no exterior e representada por Kubota. Em 2022, Batel deixou a sociedade, passando suas cotas para a KHealth.
“A empresa B-Life Saúde Ltda. foi constituída por Carlos Kubota e Flávio Batel em 2022, em um momento em que a pirâmide financeira operada por Batel já demonstrava sinais de colapso. A constituição dessa sociedade levanta sérias suspeitas de que tenha sido criada com o objetivo de facilitar a evasão de divisas, desviando para o exterior recursos públicos investidos indevidamente pelo CFO na Solstic”, aponta a denúncia.
“A empresa estrangeira KHealth LLC, que compunha a estrutura societária da B-Life e tem sede no exterior, aparece como elo estratégico na rede de lavagem de dinheiro sob apuração, indicando que a operação foi concebida para ocultar a origem dos recursos desviados”, prossegue a denúncia.
Com base nesses indícios, as hipóteses levantadas pela denúncia são de que “Batel pode ter sido pressionado ou usado como laranja, já que, mesmo tendo recebido mais de R$ 100 milhões, chegou a passar por dificuldades financeiras”, e que “Kubota pode ter sido o beneficiário final, esvaziando os recursos por meio de suas empresas internacionais, como a KHealth”.
O caso toma contornos mais obscuros a partir da morte, em circunstâncias misteriosas, do empresário Flávio Batel, em 13 de novembro de 2024. O laudo de necropsia registrou “causa indeterminada”, mas a denúncia aponta a existência de “suspeitas de suicídio por ingestão de soda cáustica, segundo relatos informais”. Na sequência, em 6 de dezembro de 2024, o então presidente, Juliano do Vale, e o então tesoureiro do conselho federal, Luiz Evaristo Volpato, renunciaram aos cargos.
“O ex-presidente Juliano do Vale e o ex-tesoureiro Luiz Evaristo Volpato, ambos citados, deveriam ter tomado posse no dia 8 de dezembro de 2024 para a continuidade do mandato, mas renunciaram misteriosamente ao cargo antes da posse, no dia 6 de dezembro de 2024. Atualmente, não compõem o Plenário do CFO. Tal saída repentina ocorreu muito próxima da data da morte de Flávio Batel, o que reforça a suspeita de que já havia pleno conhecimento da gravidade dos fatos nos bastidores da autarquia”, diz a documentação recebida pelo TCU.
Com as renúncias, o então secretário-geral Cláudio Miyake assumiu o comando da instituição. Em abril, o CFO emitiu um comunicado interno, assinado por toda a nova diretoria, afirmando que a Solstic Capital havia devolvido R$ 8 milhões do dinheiro supostamente investido e assumido uma dívida no valor de R$ 37 milhões. A nota também informava que o caso havia sido levado ao Ministério Público Federal (MPF) e isentava os integrantes da atual direção das irregularidades apontadas.
“É essencial destacar que todas as decisões administrativas e financeiras relacionadas a este investimento foram formalmente tomadas e executadas pelo então presidente Dr. Juliano do Vale e pelo tesoureiro Luiz Evaristo Volpato, responsáveis diretos pela gestão financeira da autarquia conforme suas atribuições legais e regimentais. As análises técnicas da operação foram conduzidas pela funcionária da tesouraria, que acompanhou todo o trâmite operacional”, afirmou a nota.
“O CFO manifesta profundo pesar ao constatar que a instituição foi vítima de um elaborado golpe financeiro arquitetado pelo Sr. Flávio Batel e suas empresas, conforme evidenciam os fatos documentados na ação judicial e na notícia-crime apresentadas aos órgãos competentes. Conforme apurado, o esquema envolveu a apresentação de falsas credenciais, promessas fraudulentas e uma complexa engenharia financeira com o único objetivo de apropriar-se indevidamente dos recursos da autarquia”, apontou o comunicado.
A denúncia enviada ao TCU alega que a Solstic Capital, braço da Solstic Advisors, de Batel, não tinha autorização da Comissão de Valores Mobiliários nem do Banco Central para operar com investimentos. A empresa, diz a documentação, atuava na produção de móveis de escritório. “Era uma holding criada por Flávio Batel com o objetivo de montar móveis, mais especificamente cadeiras de escritório. Segundo informações obtidas, havia um contrato dessa holding com o banco Santander, pelo qual Batel importava componentes da China, montava e entregava as cadeiras ao banco, com lucro estimado em 20%”, afirma a denúncia.
A nota da diretoria do CFO confirmou que a empresa não era credenciada para o recebimento dos valores e alegou que sua escolha se deu em um momento de crise provocada pela pandemia da Covid-19, quando “profissionais de todo o Brasil enfrentaram graves dificuldades financeiras e clamavam por linhas de crédito e apoio financeiro”.
“Relatórios da auditoria externa, solicitada pela atual gestão em 2025, confirmam que a Solstic Capital não era habilitada pelo Banco Central ou pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para custódia de depósitos de investidores ou para oferecer remuneração, e que o contrato estava à margem das normas do mercado financeiro. Os extratos mensais emitidos pela própria Solstic, sem correspondência em instituições financeiras oficiais, constituem fortes indícios de estelionato financeiro”, argumentou o CFO, em abril.
Além do afastamento da diretoria do CFO, a denúncia apresentada ao TCU pede a instauração de inquérito para apuração dos crimes de peculato, estelionato, advocacia administrativa, tráfico de influência, formação de organização criminosa, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, prevaricação e desobediência a ordem judicial.
Em contato com a coluna na terça-feira (13/5), o conselho federal emitiu novo comunicado no qual reafirmou a responsabilidade da gestão anterior e disse ter ajuizado uma ação de cobrança junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). A entidade também enviou a nota divulgada em abril, sem a data e sem assinatura da diretoria.
Leia abaixo a íntegra das notas do CFO:
“O Conselho Federal de Odontologia esclarece que a mencionada operação foi realizada na gestão anterior, por antigos membros da diretoria, possivelmente vítimas de golpe financeiro. Após tomar posse em dezembro de 2024 e realizar análises criteriosas da documentação disponível, a atual gestão determinou a instauração de auditorias internas e, posteriormente, realizou o ajuizamento de ação de cobrança no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (1012194-73.2025.4.01.0000), além da apresentação de notícia-crime ao Ministério Público Federal (PR-DF 00040128/2025). O CFO informa que tem empenhado todos os esforços necessários para auxiliar a Justiça na elucidação do caso e garantir as devidas indenizações, como explicitado no documento anexado.
No período em que a operação financeira foi realizada, o atual presidente, Claudio Miyake, ocupava o cargo de secretário do Conselho, cujas funções são totalmente desvinculadas das decisões e ou atividades financeiras da autarquia. Sendo assim, ele não tinha qualquer ascendência sobre balanços ou prestações de contas.
Confira nota em anexo com as informações completas sobre o caso, de acordo com a cronologia dos acontecimentos.”
“NOTA OFICIAL DE ESCLARECIMENTO – CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA
O Conselho Federal de Odontologia (CFO) vem a público prestar esclarecimentos detalhados sobre o investimento realizado na empresa Solstic Capital Invest. e Participações Ltda, ocorrido durante a gestão 2018-2021 e 2022 – 2024, e informar as providências jurídicas adotadas para recuperação dos valores.