Na alteração contida na Lei 13.964, o conhecido “pacote anticrime”, que foi promulgada em dezembro de 2019, há uma significativa alteração no que diz respeito ao crime de estelionato, previsto no art. 171, do Código Penal.
O pacote anticrime alterou o parágrafo 5º do tipo penal definido como estelionato, passando a vigorar de forma “mista”, contendo aspectos de direitos materiais e processuais, voltando a discussão sobre a possibilidade de retroatividade em benefício do réu por se tratar de uma novatio legis in mellius.
O conflito já estava pacificado de modo que, todas as normas que contivessem este caráter misto, iriam retroagir por inteiro, uma vez que não seria possível desmembrar a parte material da parte processual, e esta última teria um maior embasamento por estar pautada no inciso XL de nossa Constituição Federal, desde que favorecesse o réu (novatio legis in mellius).
Entretanto, este entendimento foi questionado, debatido, e em algumas ocasiões, foi vencido nos tribunais, visando como base não só o caso concreto, mas também se utilizando de novos princípios e fundamentos jurídicos.
Sabemos que as leis penais que possuem conteúdo material, só retroagem se a nova lei beneficiar o réu, deste modo então ela poderá retroceder e alcançar a data do fato.
Assim podemos afirmar que o agente responderia pela lei vigente na época do fato, e caso houvesse uma nova legislação sobre o mesmo tipo penal, que seja mais benéfica que a primeira, então essa nova lei seria utilizada para beneficiar o agente a época de sua sentença, no caso.
De forma diferente, segundo nosso código de processo penal, a regra sobre a irretroatividade da Lei Processual Penal, é que não irá retroagir. Sendo assim, será estipulada pelas normas vigentes à época dos atos processuais, independente se for benéfica ou não ao réu.
Porém conforme o tema foi se desenrolando, alguns julgados, a definição da lei processual mista no tempo foi alterada nos tribunais.
Nos casos já transitados em julgado, tratando-se de normas mistas ou híbridas, isto é, aquelas que possuem aspectos processuais e penais, não retroagirão, salvo se benéficas, respeitando-se, contudo, a coisa julgada.
Assim, a lei 13.964 trouxe uma alteração no crime de estelionato, tipificado no artigo 171 do CP ao incluir o parágrafo 5° do instrumento legal.
A mudança alterou a forma de representação do crime, sendo assim, o tipo penal. Antes de sua vigência, era incondicionado à representação, ou seja, uma vez noticiado ao conhecimento da autoridade competente, investigações e o processo iriam prosseguir independentemente da vontade da vítima.
Com a inclusão do parágrafo 5º, o crime passou a ser, em regra, condicionado à representação, porém manteve como exceção a ação incondicionada a representação, dependendo quem configura como vítima. Como a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
Assim, poderia se concluir por um raciocínio lógico que, ao termos uma novatio legis in mellius com a característica mista, e partindo do pressuposto de que a parte material retroage para beneficiar o réu, e inferir-se que o magistrado não poderá separar a parte processual da material, deveria então, ao seguir toda a doutrina pré-estabelecida como majoritária, decidir que a parte processual (representação), retroagiria também.
Assim, todos os processos em que a vítima não se enquadrasse no rol acima, deveriam retornar para o início do processo para que a vítima ratificasse o ato processual, fazendo a representação contra o agente, oferecendo a denúncia novamente. Beneficiando assim o réu no caso.
Entretanto, essa “regra” foi ganhando diferentes interpretações e entendimentos distintos jurisprudenciais
Era de se imaginar que com essa mudança, diversas ações seriam ingressadas nos tribunais para que os processos em trâmite retornassem à primeira instância. O que de fato ocorreu, onde foi debatida em juízo monocrático como nas cortes superiores.
No entanto, surgiu um segundo ponto de vista para esta ocasião, versando principalmente, que a alteração estabelecida pelo pacote anti crime não irá retroagir, conforme julgaram a 5ª e a 3ª turma do Superior tribunal de Justiça e a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, onde o Relator, Ministro Alexandre de Moraes, expôs o seu voto:
“Em face da natureza mista (penal/processual) da norma prevista no §5º do artigo 171 do Código Penal, sua aplicação retroativa será obrigatória em todas as hipóteses onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público, independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do artigo 2º, do Código de Processo Penal, por tratar-se de verdadeira “condição de procedibilidade da ação penal”. 3.Inaplicável a retroatividade do §5º do artigo 171 do Código Penal, às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/19; uma vez que, naquele momento a norma processual em vigor definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo. A nova legislação não prevê a manifestação da vítima como condição de prosseguibilidade quando já oferecida a denúncia pelo Ministério Público. 5.Inexistente, no caso concreto, de ilegalidade, constrangimento ilegal ou teratologia apta a justificar a excepcional concessão de Habeas Corpus. INDEFERIMENTO da ordem.”
Assim com o respectivo acórdão, não haverá retroatividade da lei processual mista, independentemente de qual fase esteja o processo, isso porque se tratou de um ato jurídico perfeito, que cumpriu os seus requisitos à época e a sua finalidade.
Na falta do texto legal, a jurisprudência flexibilizou ao estabelecer o seu entendimento, e o fez com objetivo de dar autenticidade aos atos já praticados.
Porém, o novo entendimento esbarra na doutrina prevalente e das próprias câmaras judiciárias, a dar-se, por exemplo, a 6ª turma do STJ, que julgou baseando-se no entendimento doutrinário, reconhecendo que a norma mista, uma vez mais benéfica ao réu, deverá retroagir para o beneficiar, conforme estabelece a Constituição Federal e o Código Penal.
Ademais, a própria 2ª Turma do Superior Tribunal Federal julgou por retroceder a questão da denúncia nos casos em que não tivesse transitado em julgado:
“Decisão: A Turma, por maioria, negou provimento ao agravo regimental, mas concedeu o habeas corpus, de ofício, e trancou a ação penal, com a aplicação retroativa, até o trânsito em julgado, do disposto no art. 171, § 5º, do CP, com a alteração introduzida pela Lei n. 13.964/2019, nos termos do voto do Relator, vencido, em parte, o Ministro Ricardo Lewandowski, que dava provimento ao recurso para conceder a ordem e trancar a ação penal. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. 2ª Turma, 22.6.2021 (grifo próprio). (STF - HC: 5180421 SP 00084891-64.2020, Relator: Ministro EDSON FACHIN, Data de Publicação: DJ 22/06/2021).”
Dentre os votos deste mesmo julgado, a Ministra Cármen Lúcia decidiu o tema de forma diferente, e reconsiderou seu pensamento para aproveitar o princípio do Direito e das garantias individuais, reconhecendo a natureza mista (material e processual) da alteração legislativa.
Assim, surgem dois panoramas: O primeiro sobre a prevalência da tese de “ato jurídico perfeito”, em que não irão voltar ao início do processo em que já foram oferecidas as denúncias e a figura do réu terá seu direito constitucional lesado; Já no segundo, prevalece o conceito de “novatio legis in mellius” sobre a norma do pacote anti crime, onde todos os processos ainda não transitados em julgado deverão retornar para a comarca inicial para o oferecimento da denúncia, que caso não ocorra, importará na absolvição por falta de justa causa e representatividade.
Porém os acórdãos até a presente data, tanto os favoráveis, quanto os contrários a retroação, não foram unânimes, o que mostra a dúvida que paira sobre o judiciário.
O princípio da retroatividade benéfica é um princípio penal, e se mantém há muito tempo. Diminuí-lo a mera justificação do “ato jurídico perfeito” é uma afronta ao direito e a justa proteção do réu.
Rafael Panzarini é Advogado em Mato Grosso
Maurício
Quarta-Feira, 06 de Julho de 2022, 15h36