“A coisa pior da vida é ninguém ligar para ele. Vocês não sabem o que é isto – seus pais gostam de vocês, existem os tios, os amiguinhos. Mas, Onofre era o mais desprezado bichinho da face da terra. E só porque era feio, tinha pernas tortas e era mais baixo do que os outros. O Onofre era muito bom e isto compensava todos os seus defeitos físicos. Por isso, Rosinha, a grilinha mais bonita dos campos (eu me tinha esquecido de dizer que o Onofre é um grilo) ficou gostando muito dele”... (sic). Assim, embalado nas doces asas da ficção infantil, eu ouvia o original de Ronaldo Vaz de Carvalho, sôfrego pelo desfecho triunfante do Onofre, transformado pela fada em um grilo forte, que, vencendo o grilo campeão, foi proclamado o companheiro da “grila Rosinha”.
Na pacata província, o grilo era personagem sempre presente na vida doméstica: simpático inseto da ordem dos saltatórios, de longas antenas e aparelho musical. As crianças divertiam-se com ele, ora provocando estalo para vê-lo saltitar, ora prendendo-o à linha para vê-lo revolutear em movimentos rápidos e nervosos. No silêncio das ruas, ouvia-se facilmente o cricri provocado pelo órgão estridulante do pequenino animal, aliás, só o grilo macho canta para atrair a companheira.
O tempo passou, tudo mudou, e hoje só raramente o vejo ao redor de casa, escondido junto das pedras. Com o crescimento populacional, favorecido pela tecnologia hodierna, veio a poluição, tanta poluição, incluindo a sonora. O silêncio acabou, predominam os roncos das máquinas. Onde houver um espaço silencioso, logo é ele usurpado pelo barulho, que agride grosseiramente os ouvidos, cujo sentido da audição não dorme.
As cidades brasileiras estão tomadas de ruídos; na Avenida Paulista, desrespeitando hospitais próximos, explodem comemorações com fogos, som da pesada, gritos e tiros até o amanhecer.
Leis não faltam, são abundantes, mas não são cumpridas. A Lei do Silêncio permanece apenas no papel. O governo federal, em período pré-eleitoral de 1998, vetou um mandamento da Lei do Meio Ambiente, que reprimiria sons estridentes, como os das cornetas eletrônicas.
Na capital mato-grossense, ademais nos dias alegres e até selvagens da Copa do Mundo, fortalezas sonoras rondaram até a madrugada, aterrorizando a população doente por não dormir. São veículos com escapamentos envenenados, gigantescas motocicletas desprovidas de silenciador, a operação de guerra dos caminhões do lixo, as estridentes cornetas, casas noturnas exasperando os decibéis em bairros residenciais. Abrem as portas para as mais diversas patologias da população impedida do descanso noturno, já estressada pela faina diurna barulhenta.
O discurso da cidadania da Constituição Federal não se materializa por inteiro, com os direitos e garantias individuais. Verdade é o reduzido estágio da nossa cultura cidadã, que envolve o infrator e a autoridade repressora.
Quem outrora tenha ouvido os sons da natureza cuiabana, do cricri do anoitecer à alvorada do galo, não esteja grilado com essa farra? Grilo por “grilo,” preferiria a música do primeiro, voltando-me ao tempo da cidade ingênua e calma, quando, nas rodas noturnas à porta da casa grande, eu ouvia estórias do Onofre. Saudade, espinho que fere as rosas do passado, alimenta o nosso espírito. Distante do saudosismo prejudicial, tê-la é muito bom para reabastecer o ânimo a fim de suportar estes tempos adversos.
*BENEDITO PEDRO DORILEO é advogado e foi reitor da UFMT