Desde a redemocratização do sistema jurídico brasileiro com o advento da Carta Cidadã em 19881, a probidade administrativa e a transparência dos atos estatais são assuntos destacados não apenas no bojo da legislação e nas diversas medidas tomadas como forma de garantir a integridade do patrimônio público, mas, no interesse geral de uma coletividade irresignada com o longevo cenário de insegurança política, administrativa e econômica do País.
Assim sendo, em 1992 foi sancionada a Lei n. 8.429 pelo então Presidente Fernando Collor de Mello2, regulamentando o artigo 37, §4º da CRFB, como resposta a esses anseios gerais, e considerado popularmente como um marco no combate à corrupção no País, dado que disciplinou a improbidade administrativa. Ocorre que, a insuficiência normativa da citada Lei que em muitos pontos foi omissa e temas relevantes foram limitados, gerou grande repercussão de cunho teórico, prático e jurídico3.
A decorrência desse desamparo legislativo – em conjunto com as divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema e propagação desenfreada de Ações Judiciais – foi a promulgação da Lei n. 14.230 em 26 de outubro de 20214. A edição dessa legislação não revogou a antiga LIA, contudo, indene de dúvidas, trouxe renovada roupagem.
Por conseguinte, a inserção de novas prescrições legais à 8.429/1992 consignando assuntos até então não expressamente disciplinados, tais como a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema da improbidade, e a revogação da conduta na modalidade culposa, reascende a necessidade de uma outra análise sobre a natureza jurídica da Ação de Improbidade Administrativa e seu verdadeiro enfoque.
Na medida em que, a depender do parâmetro utilizado para delimitar a característica dessa ação, entram em conflito alguns objetivos e princípios, influindo diretamente na aplicação de direitos fundamentais conferidos pela Constituição Federal.
Isso porque, a alteração legislativa proporcionada pela Lei 14.230/2021consignou expressamente através da nova redação do artigo 17 da Lei n. 8.429/92 que o rito da Ação para aplicação das sanções previstas seguirá o procedimento comum previsto pelo Código de Processo Civil, ao passo que em seu artigo 17-D definiu seu caráter repressivo-sancionatório, fixando que não constitui Ação Civil, além de inserir diversos dispositivos que se aproximam do ramo do direito penal.
É notório no ramo do Direito Administrativo que a literatura ainda não havia posicionamento em conformidade5, porquanto não apenas juristas e doutrinadores revelavam posições divergentes, mas, decisões do próprio Poder Judiciário em diversificados Tribunais do País que ou a conferiam caráter tipicamente administrativo; cível; com conotação penal e até mesmo com natureza complexa6.
Na realidade prática, a norma consideravelmente se aproximou das regras do direito penal moderno, todavia, continua fixada às concepções civilistas, motivando muito dissenso entre juristas, advogados e doutrinadores, entre os julgamentos do Poder Judiciário, bem como, entre a posição dos membros do órgão acusador. É fundamental, então, uma reanálise aprofundada da característica dessa Ação, remontando seu nascedouro; sua aplicabilidade; e as possíveis consequências reais que podem aniquilar seu propósito.
Nessa perspectiva, ao delimitar o rol de sanções a serem aplicadas ao agente ímprobo no ensejo de responsabilizá-lo e mitigar os danos causados ao erário, a LIA optou por cominações que, inobstante não instituírem o encarceramento do indivíduo, mitigam atos essenciais da vida civil.
A exemplo da suspensão dos direitos políticos, que na lição de José Afonso da Silva:
Denominamos direitos políticos negativos àquelas determinações constitucionais que, de uma forma ou de outra, importem em privar o cidadão do direito de participação no processo político e nos órgãos governamentais. São negativos precisamente porque consistem no conjunto de regras que negam, ao cidadão, o direito de eleger, ou de ser eleito, ou de exercer atividade político-partidária ou de exercer função pública7.
Ou seja, obsta diretamente os direitos políticos positivos, impactando não apenas no direito de elegibilidade, mas, na capacidade eleitoral ativa, no direito de voto em plebiscitos e referendos, direito de iniciativa popular, de propor ação popular, entre outros, privando o próprio desempenho da cidadania.
Outra sanção sabidamente estabelecida é a perda do cargo ou função pública. Nessa cominação, como manifesto, enquadram-se agentes públicos, desde político, servidores, todo aquele que exerce vínculo com a Administração, a nível federal, estadual, distrital e municipal, de todos os Poderes8.
Correlacionando à uma circunstância tangível, supõe-se o caso de um funcionário público de carreira, com vínculo estabelecido há mais de 15 (quinze) anos, habituado a exercer o ofício designado por concurso público. A punição imposta de perda da função pública9 acarreta intenso efeito não somente na atividade profissional, porém, na essência da vida pessoal, econômica e social.
Destarte, os contextos apresentados são apenas algumas das hipóteses das penas aplicáveis ao sujeito condenado por improbidade administrativa e as possíveis consequências que podem atingir o núcleo de direitos fundamentais básicos, não se desconsiderando, evidentemente, que são resultados das condutas dolosas tipificadas nos artigos 9º, 10º e 11º da LIA.
E que, indiscutivelmente, essa responsabilização é legítima para que o sistema concretize as medidas de tutela da probidade na organização do Estado e no empenho das suas atribuições, como propôs o artigo 1º da legislação em apontamento, ainda que outras garantias constitucionais sejam minoradas.
Porém, ponderar quais dos direitos, garantias e princípios serão priorizados em face de outros, não significa que esse sopesamento dar-se-á invariavelmente, de forma quase formulada por Ovídio em Heroídes10, ignorando por completo os direitos que foram preteridos e violando os instrumentos legais que viabilizam a Ação de Improbidade.
Foi justamente na contramão desse movimento que o novo texto inserido pela Lei n. 14.230/2021 incluiu diversos dispositivos estipulando os trâmites do procedimento da Ação de Improbidade Administrativa, no desígnio de que essa implementação se dê em plena consonância com as diretrizes constitucionais de proteção ao patrimônio público, garantindo sua integridade, em sincronia com as normas do direito administrativo sancionador.
Ana Luísa Segatto é Advogada no escritório Segatto Advocacia, Professora Voluntária de Processo Constitucional na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Graduada pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Pós-Graduada em Processo Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso (FESMP/MT). Pós-Graduada em Direito Administrativo e Anticorrupção pelo Complexo Educacional Renato Saraiva. Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/MT. E-mail [email protected].