A Câmara de Cuiabá aprovou, na terça-feira (15), em segunda votação, um projeto de lei que proíbe procedimentos médicos voltados à transição de gênero em menores de 18 anos. A proposta, de autoria do vereador Rafael Ranalli (PL), impede o uso de bloqueadores hormonais, hormonioterapia cruzada e cirurgias de redesignação sexual em adolescentes, tanto na rede pública quanto na privada.
Para entender os impactos jurídicos e sociais da medida, o GD entrevistou a advogada Daniella Veyga, a primeira mulher trans registrada na Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso (OAB/MT). Ela criticou a medida, questionou sua legalidade e apontou riscos graves à saúde de jovens trans.
GD: Do ponto de vista jurídico, esse tipo de projeto é de competência do Município ou deveria ser tratado pela União?
Daniella Veyga: As Câmaras municipais podem, sim, legislar em assuntos locais, mas nesse caso estamos falando de algo que já é regulado nacionalmente. O Ministério da Saúde, o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal de Psicologia já definem diretrizes sobre esses atendimentos. Quando um município tenta contrariar normas federais, cria-se um conflito jurídico grave. E mais, se um profissional for penalizado em Cuiabá, pode simplesmente atravessar a ponte para Várzea Grande e continuar atuando normalmente. Isso mostra que a lei não traz segurança jurídica, ela só cria obstáculos desnecessários.
GD: A proposta pode ser considerada inconstitucional?
Daniella Veyga: Sim. Ela fere princípios fundamentais como o da dignidade da pessoa humana, o direito ao acesso universal à saúde e a autonomia de médicos e pacientes. Além disso, é inconstitucional tanto formal quanto materialmente. Não é um projeto regulamentador, é um projeto perseguidor. Ele ataca diretamente pessoas trans e tenta impedir o acesso delas a cuidados de saúde essenciais.
GD: Existe possibilidade de judicialização da lei?
Daniella Veyga: Com certeza. Caso seja sancionado, o projeto pode ser questionado por diversos meios jurídicos, como mandado de segurança ou ação civil pública. Esses instrumentos podem ser usados por entidades como a Defensoria Pública, a OAB, os conselhos de classe, como CRM e CRP. Há base jurídica sólida para derrubar esse projeto. Além disso, se ficar comprovado que vereadores aprovaram a proposta mesmo cientes de sua inconstitucionalidade, pode-se discutir até eventual improbidade administrativa.
GD: O projeto pode ser considerado discriminatório à luz da legislação brasileira, que já equipara a transfobia ao crime de racismo?
Daniella Veyga: Com certeza. Trata-se de um projeto discriminatório, trans-excludente e perseguidor. Ele não tem como foco a proteção de crianças e adolescentes, mas, sim, o controle sobre a sexualidade e identidade de gênero alheia. Cuiabá enfrenta inúmeros problemas, como falta de moradia e de políticas para a juventude. No entanto, o foco dos legisladores está em restringir o tratamento hormonal de pessoas trans, algo já regulado nacionalmente. Isso revela uma tentativa clara de cercear direitos sob uma justificativa moralista.
GD: Quais os impactos desse tipo de legislação para adolescentes trans e suas famílias?
Daniella Veyga: O impacto é extremamente nocivo. O projeto não ataca só o tratamento hormonal, mas também o acompanhamento psicológico. Psicólogos também estariam impedidos de atuar com esses adolescentes, o que compromete o apoio necessário em uma fase delicada. Isso pode gerar agravamento do sofrimento psíquico, aumento de conflitos familiares e outros problemas. Sem apoio, essas pessoas ficam vulneráveis. É uma violência institucionalizada.
GD: Como foi sua própria transição, em uma época com menos políticas públicas de apoio?
Daniella Veyga: Minha transição aconteceu quando ainda não havia todos esses serviços públicos que existem hoje. Na época, era comum a automedicação e o contato com profissionais não qualificados. Muitas pessoas trans morreram por falta de acesso adequado. Hoje temos ambulatórios especializados com endocrinologistas, ginecologistas, psiquiatras e psicólogos. Isso é uma vitória. Falar sobre o envelhecimento da população trans também é importante. Estamos conquistando mais longevidade e isso exige políticas públicas específicas.
GD: Socialmente, como foi o seu processo de afirmação enquanto mulher trans e advogada?
Danilla Veyga: A sociedade é cruel com as mulheres em geral e mais ainda com as mulheres trans. A gente precisa provar o triplo da nossa capacidade. Sempre fui apaixonada por estudar, por aprender, e isso foi fundamental na minha trajetória. Hoje estou na Defensoria Pública, não por ação afirmativa, mas pela minha qualificação técnica. Sou uma mulher trans, mas também sou uma profissional completa. Tenho competência para atuar em qualquer área do Direito, não apenas nas pautas LGBTs. Nós, mulheres trans, estamos ocupando espaços com mérito e capacidade. E vamos ocupar muitos mais.
13/07
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